Alberto Gonçalves
Segundo notícias, a crise fez aumentar a quantidade de animais de estimação abandonados. A crise tem
as costas largas. Conheço muito bem gente muito pobre que, nem sei como,
alberga quinze bichos em casa, e nem todas as crises que já experimentaram os
convenceram a largá-los na rua.
É o que sucede com os crimes,
para citar uma lenda corrente. É comum atribuir-se aos apertos económicos uma
escalada na taxa de assaltos ou homicídios. Porém, a relação é negada pelos
indicadores estatísticos disponíveis e pelo bom senso. Nenhum cidadão digno
desata a roubar ou a matar o semelhante apenas porque empobreceu, por mais
extrema ou até injusta que seja essa pobreza. A ocasião não faz o ladrão, que
se não nasceu feito fez-se algures no caminho, fruto do exemplo, do acaso ou do
carácter.
Os sujeitos que eliminam fauna
caseira a pretexto da austeridade são os mesmos que a enxotariam a pretexto das
férias ou do que calhasse. A crueldade é um vício. A estupidez é uma marca.
Freud lembrava que a devoção de um cão ao dono é o único amor incondicional.
Por definição, a inversa não é obviamente verdadeira. De resto, e a benefício
da clareza, não reivindico leis que castiguem quem larga bichos por
conveniência: a decência não se alcança por decreto. Só gostaria que, se me perdoarem
nova citação, a certeza de Milan Kundera de que o cão é o elo do homem com o
Paraíso estivesse realmente certa, e que aqueles que quebram o elo acabassem no
lugar que merecem. Mas sou um descrente, dos homens e da justiça divina.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias
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