terça-feira, 15 de novembro de 2016

Manutenção do mausoléu custa quatro hospitais

Rafael Marques de Morais


O Orçamento Geral do Estado para 2017 apresenta despesas que, comparadas entre si, causam, no mínimo, grande estranheza.

Ressalta à vista, por exemplo, o orçamento dedicado à manutenção e conservação do Memorial Agostinho Neto – o Mausoléu. Essa unidade orçamental da Presidência da República recebe, para o presente ano fiscal, um total de um bilião e 70 milhões de kwanzas (US$ 6.4 milhões, ao câmbio do dia). O Mausoléu alberga o sarcófago e o espólio do primeiro presidente da República, Agostinho Neto.

Como pode a manutenção anual de um mausoléu, dedicado a um médico, custar mais do que a construção de quatro hospitais? Sim, o montante atribuído à manutenção do Mausoléu é superior ao montante que se atribuiu à construção de quatro hospitais municipais — em Cangamba (província do Moxico), Cuvelai (província do Cunene), Cuemba (província do Bié) e Kuito-Kuanavale (província do Kuango-Kubango) —, os quais recebem, conjuntamente, um total de 826 milhões e 746 mil kwanzas (US$ 4.9 milhões).

A primeira ilação que se pode retirar desta comparação de valores é que o planeamento destes hospitais nunca sairá do papel ou serão construídos apenas postos médicos.

Trata-se de um caso exemplar, que permite compreender em termos concretos a distinção que a Presidência estabelece entre economia real e a economia fictícia — ou, parafraseando o cartoonista Sérgio Piçarra, a economia virtual. A Comissão para a Economia Real, que inclui o Grupo Técnico, é um órgão sob a tutela da Presidência da República. Angola deve ser o único país do mundo com uma Comissão para a Economia Real. Há-de servir para que, de vez em quando, o presidente se lembre da realidade em que vive, pois tudo à sua volta parece ser virtual. E deve ser para melhorar o seu desempenho virtual no domínio da saúde que o Executivo também constrói hospitais reais e hospitais fictícios.

É ainda possível uma segunda leitura. No entender do governo angolano, os cuidados para com o falecido Agostinho Neto, pelo facto de este ter sido o primeiro presidente de Angola, valem mais do que a saúde das centenas de milhares de cidadãos que vivem nos municípios de Cangamba, Cuemba, Cuvelai e Kuito-Kuanavale.

Finalmente, uma terceira leitura. Ninguém se deu ao trabalho de fazer contas racionais.

Avançando um pouco mais na leitura do Orçamento Geral do Estado, o montante alocado ao Mausoléu (também conhecido como “Foguetão”, devido à sua estrutura arquitetónica) é superior aos valores atribuídos às universidades públicas Kimpa Vita, que recebe 895 milhões e 90 mil kwanzas (US$ 5.4 milhões), e Lueji A’Nkonde, com 685 milhões e 964 mil kwanzas (US$ 4.1 milhões). A Universidade Kimpa Vita, com mais de nove mil estudantes e 201 docentes, representa a VII Região Académica, localizada nas províncias do Uíge e Kwanza-Norte. Por sua vez, a Lueji A-Nkonde, com cerca de dez mil estudantes, situa-se nas províncias da Lunda-Norte, Lunda-Sul e Malanje, compreendendo a IV Região Académica.

Desta informação também podemos inferir três leituras.

Primeiro, é mais caro preservar a imagem de Agostinho Neto, tão manchada pelos massacres do 27 de Maio e outros crimes hediondos, do que educar os estudantes universitários do centro, leste e norte de Angola.

No entanto, a Universidade José Eduardo dos Santos, instalada nas províncias do Huambo, Bié e Moxico (V Região), com mais de 12 mil estudantes, tem um orçamento quase duas vezes superior ao do Memorial Agostinho Neto, com uma fatia de um bilião e 981 mil kwanzas (US$ 11.9 milhões). O que nos levará a concluir: vale mais a imagem de um presidente vivo do que a de um presidente morto.

Segunda leitura. O modelo de institucionalização da distinção entre as políticas reais e as políticas virtuais também se aplica à educação. Basta ver o exemplo recente da filha do presidente, Isabel dos Santos, que justificou a sua nomeação como presidente do conselho de administração da Sonangol com o facto de ter estudado em Inglaterra, onde se licenciou em Engenharia Electrotécnica (Universidade de Londres). Com este argumento, Isabel dos Santos chamou inadvertidamente a atenção para a “política de estudos reais” instituída pelo seu pai: os filhos da elite beneficiam de bolsas de estudo para se formarem no Ocidente, onde há verdadeiro ambiente de liberdade académica. (Há também aqueles que têm posses suficientes para pagar os estudos dos filhos no estrangeiro e uns poucos que lutam pela realização do seu sonho.)

Depois, há a política virtual de educação no sistema de ensino público, em que os alunos, para se formarem com algum conhecimento, têm de ser especialmente dotados ou muito bem acompanhados pelos pais. Muitos limitam-se a receber diplomas a que só darão uso caso sejam militantes do MPLA ou tenham “cunhas”, por via das quais podem assumir empregos e cargos sem as competências requeridas.

Terceira leitura. Em Angola, uma instrução inclusiva e de qualidade seria inimiga do poder e limitaria crescentemente os constantes abusos de autoridade, pelo que o regime persiste em boicotá-la.

O regime já nem se esforça por manter as aparências dos seus actos. É tudo à toa, conforme o dito popular. O OGE de 2017 é mais um escândalo, um insulto à inteligência colectiva do povo angolano. É um documento mirabolante, que mistura realidade e ficção, escárnio e incompetência, arrogância e impunidade. É assim que o Executivo de José Eduardo dos Santos faz as contas públicas, sem dar cavaco a ninguém.
O Orçamento é uma ficção. Mas o pesadelo que o regime impõe ao povo angolano é bastante real. E dói.
Título, Imagem e Texto: Rafael Marques de Morais, Maka Angola, 15-11-2016

Relacionados:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-