Helena Matos
O senhorio, tal como o dono do café no
tempo de Sócrates, representa aquilo que um marxista não pode tolerar: que
alguém com pouco dinheiro crie um negócio.
12 de agosto de 2012. Lia-se
no JN: “Um grupo de populares que contesta a introdução de portagens na Via
do Infante tentou, este domingo à tarde, abordar o primeiro-ministro quando
este se dirigia para a praia, acompanhado pela mulher e pela filha, assustando
a criança, que começou a chorar. (…) Já esta manhã, membros da Comissão de
Utentes da Via do Infante tinham tentado abordar o chefe de Governo na casa
onde está a passar férias.”
Perante a gravidade da
situação logo o blogue Corporações (sim, esse mesmo blogue que Sócrates pagava
e que replicava o argumentário da esquerda caviar) deu o mote: “PPC e os aprendizes de feiticeiros do spin político que tomaram conta do PSD e do Governo utilizam de forma descarada e intencional a família e a esfera privada para efeitos de marketing político. À medida que exageram começam a ter a merecida retribuição.” Portanto o problema não era a
campanha de intimação montada pelo tal grupo de populares (que de populares
nada tinham e que enquanto grupo se destacava pela proximidade ao BE) mas sim
Passos Coelho ter ido de férias para a praia, o que levava à tal “merecida
retribuição” no dizer do Corporações e não só, pois não faltou quem visse
populismo nas idas de Passos Coelho para a praia.
Cinco anos depois faz-se de
conta que isto nunca aconteceu: o primeiro-ministro aparecer com a família na
praia ou em qualquer outro lugar deixou de ser uma “forma descarada e
intencional” de utilização da família e da esfera privada para efeitos de
marketing político para se tornar numa manifestação de proximidade e
modernidade. Já a indignação popular deu lugar ao júbilo nacional.
É um país radioso esse que
agora se desenha nas televisões: Catarina Martins transformada numa espécie de
holograma surge de cinco em cinco minutos querendo sempre alguma coisa
apresentada como indiscutivelmente piedosa: Catarina quer acabar com a fome e
logo Catarina sorri compungida para umas crianças sentadas em bancos de escola;
Catarina quer mais gastos em saúde e logo os olhos de Catarina surgem
redondamente indignados enquanto uma voz off refere “os gastos com os privados”
… Do lado do PCP a estratégia é outra: os líderes mantêm-se a recato e quando
falam é para atacar a direita, as políticas de direita, os governos de direita
e o que de direita este governo ainda não expurgou. Depois Jerónimo manda
avançar ou entrar em letargia, Mário Nogueira, Arménio Carlos, Ana Avoila…
António Costa naturalmente vai
de férias tranquilo. Contudo quem lhe suceder no cargo ou está preparado para
viver todos os dias do ano um calvário superior ao vivido por Passos em 2012 ou
estamos tramados, literalmente falando. Porque dia a dia Portugal torna-se um
país ingovernável.
Já lá vai a fase em que o
governo de Costa tratou de comprar os favores/votos dos funcionários públicos,
transformando os serviços estatais em estruturas cujo fim não é prestar serviços,
mas sim garantirem a si mesmas um conjunto blindado de direitos e privilégios.
Que num primeiro momento a “compra” valeu politicamente a pena não se duvida: midiaticamente
não mais se morreu nas ambulâncias (nem sequer as sucessivas greves e
tolerâncias de ponto no mês de junho suscitaram qualquer denúncia sobre atrasos
nas cirurgias!) e quando um membro do governo entra numa escola ou tribunal
(sobretudo aqueles tribunais que reabriram sem qualquer outra função que não
essa mesma: fazer de conta que reabriram) só vê sorrisos e felicidade.
Este paraíso só é quebrado
quando as mesmas corporações que construíram a paz anunciam que é preciso
avançar ainda mais e sobem a parada das exigências e das ameaças. Agora por
exemplo temos em cima da mesa ameaças de greves de professores nos dias dos
exames e dos enfermeiros aos partos.
Os jornalistas limitam-se a
dar conta dos dias em que as greves anunciadas produzirão alterações de
serviço. Fazem-no no mesmo registo em que transcrevem um programa de eventos.
Ninguém pergunta nada. Por exemplo, em que se traduzirá a criação de regimes
especiais de aposentação para professores reivindicada pela Fenprof? Os regimes
especiais de aposentação foram e são um dos mais perniciosos vícios da
administração pública, um fator de tremendas injustiças e invariavelmente um
contornar das regras que se dizem para todos. Aprovar um regime especial de aposentação para um grupo profissional tão numeroso quanto
é o dos professores repercute-se fortemente na Segurança Social. Onde estão as
contas?
Sobretudo que sentido tem a
aprovação desse regime quando o fator de sustentabilidade está a fazer adiar a
idade da reforma? E vamos continuar como querem os sindicatos a aprovar
processos de contratação extraordinária de professores quando o número de
crianças continua a baixar?… Ninguém sabe, ninguém que saber. Há que avançar
diz Arménio Carlos. E Costa além do sossego na praia quer chegar a Belém e para
tal precisa do apoio do BE e do PCP.
Entretanto a máquina estatal
torna-se cada vez mais num Estado dentro do Estado, com privilégios blindados e
poderes transferidos das chefias para comissões onde manda gente nunca
escrutinada – veja-se o caso do Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos Precários na Administração Pública (PREVAP) em que os sindicatos passaram a poder indicar quais trabalhadores que podem ser integrados.
Mas por ideologia e necessidade
não lhes chega controlar a máquina estatal. A proposta delirante de
regulamentação para o alojamento local mais do que regulamentar o alojamento
local, procura intervir, controlar e cercear algo que a esquerda não consegue
tolerar: a possibilidade de alguém, com pouco dinheiro, sem subsídios nem
programas de apoio, fazer um negócio. No governo Sócrates foram os cafés e
restaurantes os alvos dessa fúria socialista. Chegou a anunciar-se que o número de cafés seria passado a metade. De repente os galheteiros e as colheres de pau tornaram-se um
problema nacional de dimensão só equiparável à presente crise do centro das
cidades cheios de pessoas.
O que agora irrita não é o
barulho feito pelos turistas – que dificilmente superará o de um andar alugado
a estudantes – ou as idiossincrasias dos ditos turistas que por muito
destravadas que sejam têm a vantagem de apenas se fazerem sentir por um breve período,
coisa que não acontece quando estão em causa as manias, os animais, as
discussões, a falta de higiene ou a má educação dos residentes habituais.
O que está por trás da
discussão, da aparente crise, do enorme problema do alojamento local é o velho
ódio marxista não tanto ao capitalista, mas sim a que alguém com pouco dinheiro
consiga ter um negócio. Pequeno, mas negócio. Essa gente a fazer contas ao que
ganha e perde em vez de estar à espera de um subsídio, de um complemento, de um
regime especial, de uma linha de apoio… é para os marxistas de hoje a
verdadeira heresia. Porque os capitalistas, esses tornaram-se parceiros.
Conhecem as regras e, como bons capitalistas, descobriram que para enriquecer
não há melhor que fazer negócios socialistas: apela-se ao patriotismo, a
empresa/banco “é nosso”, os prejuízos estão cobertos pelo contribuinte e os
lucros garantidos.
Já o senhorio, tal como
outrora o dono do café e o empresário de vão de escada, representam na sua
pequena dimensão e falta de contato com a máquina estatal, aquilo que um
marxista não pode de modo algum tolerar: que não se conte com o Estado.
Regulamentar e complicar até que só sobrem as grandes empresas municipais e
privadas é o que lhes surge como natural. E é isso que farão.
Para ser primeiro-ministro
António Costa deixou as corporações blindarem-se na máquina do Estado e usarem
esse mesmo Estado para intervir ideologicamente na economia. Enquanto o negócio
for favorável a ambas as partes Costa continuará a aparecer como um triunfador.
Quando esta farsa de
interesses acabar o Verão do então primeiro-ministro fará parecer Agosto de
2012 uma brincadeira.
PS. O Pingo Doce
lançou uma campanha dirigida os filhos dos seus funcionários que queiram
trabalhar nos supermercados do sul do país durante os meses de Julho e Agosto. Ao abrigo do programa de estágios, para jovens com idades entre os 18 e os 25 anos, o Pingo Doce oferece, por turnos diários de dez horas, com duas de descanso, uma bolsa de 500 euros líquidos, subsídio de alimentação e alojamento.
Pois não pode ser. Porquê?
José Soeiro, deputado do Bloco
de Esquerda: “é uma situação perversa e, neste caso, tratar-se-iam de falsos
estágios. Se existe a necessidade de mais trabalhadores no Algarve durante as
férias, então que se contratem mais trabalhadores“.
Rita Rato, deputada do PCP: “É
preciso perceber o enquadramento destes estágios junto da Autoridade para as
Condições do Trabalho [ACT] e do Instituto de Emprego e Formação Profissional
[IEFP]“.
Luís Azinheira, presidente do
Sindicato dos Trabalhadores Técnicos de Serviços, Comércio, Restauração e
Turismo, afeto à UGT: “um grupo como a Jerónimo Martins, que fala tanto em
responsabilidade social, quando pretende estágios assim está a aproveitar
mão-de-obra barata“.
Isabel Camarinha, do Sindicato
dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal, afeto à
CGTP: “deveriam estar a ser promovidos contratos de trabalho permanentes“,
Moral da história: os jovens
devem desistir já de tentar trabalhar. Um jovem que trabalha é um jovem em
risco de não frequentar os acampamentos de Verão do BE. O de 2016 incluiu:
Teatro do Oprimido, discussões sobre cidade e gentrificação e “sessões de
formação sobre os movimentos feminista e LGBTQIA+, o papel do trabalho, do
partido e do Estado na sociedade”
Enfim, matérias vocacionadas
para candidatos ao estatuto de bolseiros vitalícios, não para quem vai
trabalhar nas férias para ter o seu próprio dinheiro e ajudar os pais.
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 5-6-2017
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 5-6-2017
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