Da periferia das cidades nasce
quase sempre, além dos fatos criminosos diversos e das intrigas habituais
constantes, as histórias pitorescas e hilárias mais estranhas possíveis e assim
as Delegacias dessas localidades vivem incessante problema com grande monta de
Inquéritos Policiais, Termos de Ocorrências Circunstanciados, além de um número
imenso de audiências realizadas nas tentativas de compor as intermináveis
contendas a fim de evitar que os casos sigam para a Justiça já tão abarrotada
de Processos.
Em boa parte dessa população,
o cidadão considerado pobre, além de pobre financeiramente é pobre também de
espírito e não releva nada do seu semelhante ou tampouco procura saber da
verdade ou razão dos fatos geradores das intrigas para resolução em conversa
com a parte adversa, como pessoas civilizadas. De tudo procura a Delegacia,
sempre pensa estar com a razão e quer solução imediata, por vezes relacionada a
problemas esdrúxulos e sem sentido algum, como é o presente caso em que um
cidadão chegou aflito querendo providência da Polícia em uma das unidades em que
trabalhei:
- Doutor, eu amanheci vestido
com essa calcinha e com a regueira da bunda toda “melada” de gala e quero as providências
da Polícia porque fui estuprado ontem à noite por três fuleiros que eram meus
amigos... Quero que aqueles fios do cabrunco e do estopô balaio da peste sejam
presos...
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Foto: Romeo Ranoco/Reuters
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Observando de relance (sem
encostar perto) a calcinha que o cidadão mostrava e até cheirava dizendo ter
cheiro de gala e que trazia consigo como prova material do pretenso crime,
aparentemente estava com resquícios de uma substância meio grudenta, gosmenta,
parecendo realmente ser esperma. Entretanto, pela compleição física da suposta
vítima não dava margem de quaisquer suspeitas para a prática do crime de
estupro, vez que o cidadão apesar de ter 55 anos de idade demonstrava ter uns
67, além de ser maltrapilho, imundo, fedorento, desdentado, zarolho,
esquelético, mas de barriga inchada cheia de vermes, zambeta, bunda seca, barbudo
e cabeludo parecendo ter vastas criações de piolhos de toda espécie e qualidade
possíveis, um estrupício chupando limão, uma verdadeira bagaceira em final de
feira, um arremedo de defunto em decomposição que tinha se esquecido de se
enterrar. Então confabulei para não rir da excêntrica situação:
- Quer dizer que o senhor
amanheceu vestido com essa bonita calcinha de rendas vermelha e supostamente
com a bunda cheia de uma substancia parecida com esperma, por isso acha que foi
estuprado pelos seus amigos?... Conte-me esse fato direito para ver se eu
entendo como é que foi esse crime.
- Eu e mais três amigos invadimos
um terreno lá no Goré, na beira do rio e construímos um cercado no mangue seco onde
guardamos o que de melhor achamos pelas ruas e nas lixeiras, como latinhas de cervejas,
metais, garrafas de plástico, papelão e tudo mais que se aproveita na
reciclagem, e quando já tem uma boa quantidade a gente vende, divide o dinheiro
e compra os mantimentos para o nosso viver...
- Então vocês fizeram uma
espécie de cooperativa, não é verdade?... Mas vamos ao que interessa... Ao
estupro.
- Cada um de nós tem um
barraco separado e moramos vizinhos ali mesmo na invasão onde juntamos o
material. Dois deles tem mulher e uma ruma de filhos, eu e o outro não... Quando a gente vende o estoque sempre há
comemoração e ontem foi esse dia... A gente comprou duas garrafas de cachaça
pra se divertir, daí não sei mais o que aconteceu porque fiquei bêbado e dormi.
Quando me acordei estava nessa situação... De calcinha e todo melado de gala...
Fiz a maior arruaça lá, mas aí eles ficaram mangando da minha cara dizendo que
tinham arrancado meu cabaço... Como não quero matar ninguém estou aqui pedindo
ajuda da polícia... Ainda nem me lavei e estou com a bunda toda grudada e
melada de gala... Se o senhor quiser pode mandar fazer exame...
- Vamos fazer o seguinte
cidadão: Primeiro eu quero ouvir também esses seus amigos antes de tomar
qualquer posição... Eles estão lá agora ou estão pelas ruas catando lixo?...
- Com toda certeza que eles
estão lá, doutor, porque todas as vezes que a gente ganha algum dinheiro passa
dois dias sem trabalhar, só bebendo...
Mandei duas viaturas ao local.
Os policiais trouxeram além dos três acusados, as duas mulheres que fizeram
questão de acompanhá-los como testemunhas e no meu gabinete um deles explicou o
pretenso estupro do cidadão:
- Foi só uma brincadeira,
doutor... Como ele não aguentou a cachaça e apagou de vez, então tiramos a
roupa dele, colocamos a clara de três ovos na regueira da bunda dele e vestimos
essa calcinha vermelha nele que foi da minha mulher... Era tudo pra ele pensar que
realmente a gente tinha comido o rabo dele... O senhor nos desculpe doutor...
E então desabafou a suposta
vítima:
- Eu não gosto desse tipo de
brincadeira, por isso vou embora e quero a minha parte do barraco e das coisas
que vão ficar com eles...
Daí uma das mulheres
interferiu:
- Deixa de besteira rapaz!... A
idéia da brincadeira foi minha... A gente gosta de você... Além do mais você
não tem pra onde ir... Você é que nem um urubu no mundo, sem casa, sem ninguém,
sem nada, só tem a gente... Prefere morar debaixo de uma ponte só por causa de
uma besteira dessa?... Vamos voltar pra lá e “rebater a bucha”... Botei o arroz
e o feijão no fogo e até tira-gosto já aprontei... Vamos deixar o doutor
trabalhar em paz que ele tem mais o que fazer.
Autor: Archimedes Marques
(Delegado de Policia Civil no Estado de Sergipe. Pós-Graduado em Gestão
Estratégica de Segurança Pública pela Universidade Federal de Sergipe)
Outros casos:
O Conto do Peru (da Série “Casos Policiais” – 6)
Um siri em necropsia (da Série "Casos Policiais" - 5)
As galinhas dos ovos suspeitos (da Série "Casos Policiais - 4)
A jumenta fogosa (da Série "Casos policiais" - 3)
A herança banguela (da Série “ Casos Policiais" - 2)
A malfadada troca dos anéis de couro (da Série "CasosPoliciais" - 1)
O Conto do Peru (da Série “Casos Policiais” – 6)
Um siri em necropsia (da Série "Casos Policiais" - 5)
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A herança banguela (da Série “ Casos Policiais" - 2)
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