Fernando Henrique Cardoso
Desde abril até agora viajei
bastante, saindo e voltando ao Brasil. Fui aos Emirados Árabes, ao México, ao
Japão, à China e, na semana passada, ainda fui a Buenos Aires. Sempre
participando de seminários ou fazendo conferências. Lia, naturalmente, os jornais
locais que tinham edição em inglês. Por toda parte, um assunto dominante: a
crise econômica. Em alguns países, mesmo com regimes políticos muito
diferentes, como China e Brasil ou Argentina, alguma preocupação com a
corrupção. Nessa mesmice, li com prazer em Buenos Aires, no La Nación, um artigo de Marcos Aguinis, O orgulho da classe média, reproduzido no dia seguinte em O Globo.
Aguines desacredita da visão,
que predominava nos círculos de esquerda, de que a classe média - a pequena
burguesia, como era chamada - seria a Geni da História. Fascinados pelo papel
revolucionário e liberador da revolução proletária e, mais tarde, pelo ímpeto
das massas ascendentes, os ideólogos de esquerda - e não só eles, pois a moda
pegou - não viam mais do que atraso e mesquinhez na classe média, os
"desvios" pequeno-burgueses e a tibiez que lhe tiravam o ímpeto para
transformar a sociedade. Provavelmente, em certas conjunturas históricas,
especialmente na velha Europa, era assim que as classes médias agiam. Basta ler
os romances de Balzac como Eugénie Grandet ou O Pai Goriot para sentir que
essas camadas ficavam apequenadas, mesquinhas, diante da burguesia vitoriosa ou
da nobreza decadente aliada à mesma. Entretanto, terá sido essa a posição das
classes médias nas Américas e nos países de imigração?
Dou a palavra a Aguines: na
Argentina, tanto no campo como nas cidades, as classes médias se expandiram e
começaram a construir valores que deram suporte para três culturas, "a
cultura do trabalho, a cultura do esforço e a cultura da honestidade". O
mesmo, acrescento, terá ocorrido na Austrália ou no Canadá e, de outra maneira,
nos Estados Unidos. E no caso brasileiro, terá sido distinto? Esmagadas entre a
escravidão e o senhorio rural, agraciadas aqui e ali com algum título não
hereditário durante o Império, as classes médias urbanas, compostas por
profissionais liberais, funcionários públicos, militares, professores e poucas
categorias urbanas mais, no que se iriam apoiar para manter as distinções e
realizar algo na vida? Basicamente, na escola e nos valores familiares que
levam ao trabalho. Tudo com muito esforço.
Com a chegada dos imigrantes,
à medida que estes, motivados pelas necessidades de trabalhar, "faziam a
América", do mesmo modo se incorporaram às classes médias trilhando os
caminhos do estudo e buscando ostentar a "boa moral". No percurso
dessa camada de imigrantes se viu a formação de algo que poderia se aproximar
de uma "burguesia pequena", ou pequena burguesia: sua base econômica,
em maior número do que no caso das populações brasileiras mais antigas,
provinha de um pequeno negócio. Ainda assim sua inserção na sociedade e sua
gradação social eram dadas pelas mesmas virtudes das antigas classes médias, a
valorização do trabalho, o estudo "para subir na vida", a honestidade.
A própria base operária
brasileira, a camada dos trabalhadores, usando outros instrumentos de ascensão
social, como os sindicatos, e mantendo o ideal de trabalhar por conta própria,
não fugiu deste padrão: escola-trabalho-decência. Obviamente, quando a
sociedade se massifica, quando os meios de comunicação, TV à frente e, agora, a
internet, dão os compassos da dança, o quadro é menos nítido. Já não se vê com
clareza que valores guiam as chamadas classes médias emergentes. Mesmo que haja
exagero na insistência com que se repete que milhões e milhões de brasileiros
estão ingressando nas "novas classes médias", pois por enquanto se
trata de novas categorias de renda, mais do que propriamente de uma nova
"classe social", a transformação da renda em classe é questão de
tempo: esta vai se formando. Seus membros pouco a pouco irão frequentar escolas
razoáveis, criar uma teia de relações com acesso aos mesmos clubes e gozar das
mesmas facilidades de recreação, trajar-se mais ou menos de modo igual (o que já
ocorre), desenvolver uma cultura de trabalho qualificado e, de novo,
comportar-se valorizando a decência e a honestidade.
Como se comportarão essas
classes emergentes na política, quando se transformarem numa categoria social
com características, anseios e valores próprios? É provável que se juntem, nas
formas de comportamento e nos valores, às classes médias preexistentes. Estas,
no momento, se sentem um tanto desconectadas da instituição que, sem ser a
única, lhes abrigou e deu influência: o governo, o Estado. Justamente porque a
política vem sendo percebida cada vez mais como um jogo de vale-tudo, onde a
moral conta menos do que o resultado.
É hora, por isso mesmo, de
reforçar, e não de menosprezar, os valores fundamentais ditos "de classe
média" - estudo, trabalho, honestidade. Valores culturais não se impõem
por lei, são modelos de conduta aos quais se juntam sentimentos positivos. Só a
exemplaridade e a repetição enaltecida deles (na escola, na família, na mídia e
na vida pública) vão aos poucos inculcando na mentalidade geral as formas que
definem o que é bom, o que é ruim. Minha aposta é a de acreditar, como crê
Aguines, que a velha e boa classe média, que já contribuiu para a formação da
nação, ainda pode ter papel relevante e será capaz de contagiar com seus
valores as camadas emergentes, pois estas a eles já são predispostas:
melhoraram a renda com esforço e trabalho.
É certo que o descaso em nossa
vida pública pelos valores básicos das classes médias diminui as chances de que
eles venham a prevalecer. Há oportunidades, entretanto, para reforçá-los. O
julgamento do mensalão é uma delas. Seja qual for o resultado, se o Supremo
Tribunal Federal se comportar institucionalmente, sem medo de condenar ou de
absolver, desde que explicando o porquê e sendo transparente, pode ajudar a
demarcar os limites do inaceitável. Nem só de pão vive o homem. A decência e a
honestidade são partes da vida. Convém reforçar os comportamentos que se
inspiram nelas.
Título e Texto: Fernando Henrique Cardoso, O Estado de S. Paulo
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