Helena
Matos
Na passagem de
ano foram incendiados em França 940 automóveis. As autoridades rejubilaram:
afinal em 2014 tinham sido contabilizadas 1 067 viaturas queimadas. Quantas
notícias se leram sobre isto?
“Como é que a Europa deve responder aos
ataques terroristas? A solução passa sobretudo por medidas securitárias, ou
deve passar também pelo combate ao desemprego e pela integração das comunidades
árabes e islâmicas? São preocupantes os sinais que apontam para o crescimento
da xenofobia?” – No site da TSF estas perguntas lançavam o Forum da
passada sexta-feira.
O primeiro
impulso seria rir perante o óbvio destrambelho destas perguntas: combate ao
desemprego? Mas desemprego de quem? Onde é que na Europa alguma vez o
terrorismo foi praticado por pobres ou por desempregados? Os terroristas
europeus contaram nas suas fileiras com aristocratas, militares, jornalistas,
padres, artistas, estudantes, intelectuais, médicos… Agora que se mata em nome
de Alá e não de Marx as profissões são menos diferenciadas. Não temos em 2015
registo de nenhum terrorista que seja editor e aristocrata como foi nos anos 70
do século passado Giangiacomo Feltrinelli nascido em palácio, responsável pelas
melhores edições de Itália e bombista que se dizia serviço do proletariado, mas
daí a ver-se nos autores dos recentes atentados em França uns jovens que o
desemprego e a falta de oportunidades levam a matar os seus semelhantes vai um
pedaço de mau folhetim neorrealista que nenhuma realidade sustenta.
E o que se
entenderá por “integração das comunidades árabes e islâmicas”? Aliás será que
ser árabe ou islâmico faz de cada um automaticamente membro dessas ditas
comunidades? Os portugueses que emigraram para França há tantos anos quanto os
pais de muitos destes membros das atuais “comunidades árabes e islâmicas” e que
ao contrário de muitos deles nem sequer sabiam ler nem escrever e muito menos
falar francês que medidas tiveram para promover a sua integração na sociedade
francesa?
As perguntas
lançadas no Fórum da TSF são semelhantes a tantas outras formuladas nos últimos
dias. São perguntas, frases e comentários que partem sempre do mesmo princípio:
o problema da violência dos outros somos nós. Porque nós vemo-nos como
responsáveis por tudo o que aconteceu e acontece no mundo: para tudo aquilo que
os outros fazem há sempre um gesto ou uma decisão que nós ou os nossos
antepassados tomámos agora ou há quinhentos anos e que explicam, justificam e
de certa forma têm desculpado aos nossos olhos o terrorismo e os terroristas.
Nós, europeus,
temos um problema sério. Não com os terroristas que por mais chocante que seja
escrevê-lo nestes dias não é a nós, ocidentais, que causam maior dor: enquanto
na Europa se repetia “Todos somos Charlie”, na Nigéria o Boko Haram matava 2000
pessoas, na sua maioria mulheres, crianças e velhos sem que alguém se
indignasse ou sequer admirasse. Não há semana em que na Nigéria, no Paquistão
ou no Quénia o terrorismo islâmico não faça atentados. Meninas de dez anos são
transformadas em bombistas suicidas. Das vítimas ninguém sabe nada, nem a
idade, nem o nome nem o que faziam.
Ao contrário do
que sucede nesses países, o terrorismo islâmico não põe em causa o nosso modo
de vida. Muito menos os seus autores têm atualmente capacidade para condicionar
a nossa vida política como o fizeram no passado. Pense-se apenas que em 1978 as
Brigadas Vermelhas tiveram capacidade para manter Aldo Moro sequestrado durante
55 dias! O que presentemente o terrorismo consegue é confrontar-nos com um
mundo que não é apenas os resultados dos nossos atos. E para esse ruir das
nossas ilusões não estamos preparados.
O nosso problema
com o terrorismo não são os terroristas mas sim o relativismo com que
analisamos os seus atos. E quanto mais esses atos nos parecem plausíveis de ser
explicados pela cartilha do sociolês mediático (uma espécie de marxismo
caldeado com fartura e culpa cristã por viver bem) mais os toleramos. Daí que a
condenação que fazemos do terrorismo seja quase indexada ao posicionamento
político das vítimas: durante anos e anos a ETA foi tolerada porque as suas
vítimas eram geralmente militares, agentes da Guarda Civil, militantes do PP,
empresários… enfim gente que nesse discurso justificativo se procurava sempre
associar ao franquismo. Quando se tornou óbvio que as balas da ETA não
distinguiam as nucas da gente de esquerda das da gente de direita era como se
se estivesse perante um desacerto desses rapazes um pouco excitados mas apesar
de tudo gente de causas. E só nessa fase em que ser de esquerda deixou de ser
um escudo perante a ETA muito boa imprensa tida como de referência deixou de
tratar a ETA como movimento independentista para passar a designá-la como
aquilo que sempre foi: terrorista.
Pelo contrário
não houve qualquer simpatia, enquadramento sociocultural ou tentativa de
compreensão das razões que levaram Anders Behring Breivik a matar vários dos
seus concidadãos na ilha de Utøya. Breivik era branco e de olhos azuis, não
podia ser integrado em comunidade alguma e era de extrema-direita. Logo foi
visto como aquilo que era: um terrorista e não o resultado de uma qualquer
exclusão. Aliás se os irmãos Kouachi tivessem levado a sua mortandade a cabo
não no “Charlie Hebdo” mas sim num jornal de direita não faltariam neste momento
explicações para os seus gestos.
Por exemplo
explicações similares às que foram dadas em 2005 aquando do assassinato por um
fundamentalista islâmico do cineasta Theo Van Gogh, ele mesmo, a vítima,
definida como um “provocador”. Ou aquando dos atentados do 11 de Setembro em
que a culpa era inevitavelmente de Bush, dos americanos que “estavam a
pedi-las” e das torres que eram um símbolo do poderio capitalista. Explicações
similares às dadas quando o jornal dinamarquês “Jyllands-Posten” publicou
várias caricaturas de Maomé: condenou-se rapidamente a violência para logo em
seguida se partir para o perfil “populista” da publicação e, em seguida,
desenvolver longos raciocínios sobre a problemática da intolerância. Não, como
em abstrato se esperaria, da intolerância dos agressores mas sim daquela que em
nome das vítimas poderia vir a ser desenvolvida…
Os exemplos não
faltam. Nem vão continuar a faltar. Embora se possa ser levado a pensar que o
agora sucedido em França virá a marcar um antes e um depois na forma de olhar
estas questões na Europa. A própria forma como a sociedade francesa está a
reagir dá conta de algo que vem de muito antes e que não se restringe ao
fundamentalismo islâmico: estamos perante um país que perdeu para a Inglaterra
o lugar de quinta economia mundial e em que o ministro da Economia, Macron,
teve de se explicar porque declarou que era positivo que os jovens franceses
desejassem ser milionários. Um país onde grupos de jovens assaltantes conseguem
bloquear comboios, assaltar os seus passageiros (às vezes selecionando nestes e
noutros ataques as vítimas pela sua aparência racial) e ainda atacar as equipas
de socorro.
Um país que
precisamente dias antes destes atentados viu com estupefação serem publicadas
fotografias tiradas dentro de prisões francesas: a avaliar por aquilo que ali
se via de consumos de drogas e ostentação de dinheiro algumas prisões francesas
são um espaço cujo ambiente parece retirado de um qualquer festivo e sórdido
casino. Se se recuar uns meses e se se trocarem estas fotos pelos parágrafos de
um relatório policial constatar-se-á que, segundo os autores desse estudo, as
prisões francesas são um dos principais locais de radicalização dos jovens
muçulmanos pois não existe qualquer capacidade de controlar a atividade dos imanas
nos estabelecimentos prisionais. Como não podia deixar de ser rapidamente se
esqueceram os avisos contidos nesse relatório para mediática e politicamente o
tomar como pretexto para um tema bem mais aliciante e politicamente correto:
correm as prisões francesas o risco de se transformar num novo Guantánamo?
A França é o
país onde todas as semanas aparece o problema de uma funcionária de
supermercado ou escola que pretende trabalhar de rosto completamente tapado mas
onde paralelamente as ativíssimas associações ditas de livre pensamento, que se
calam respeitosamente perante a atividade dos fundamentalistas islâmicos,
exigem com urgência que se proíbam os presépios nos espaços públicos. O país
onde as autoridades se regozijaram porque na noite da passagem de ano foram
incendiados apenas 940 automóveis: afinal em 2014 tinham sido contabilizadas 1
067 viaturas queimadas. (Já agora quantas notícias se leram sobre estes factos
na imprensa portuguesa? Será que os jornalistas não sabem francês ou simplesmente
não estão preparados para dar notícias que não cabem na sua quadratura do
mundo?)
Um país onde
abordar boa parte das questões que vão do mundo do trabalho, à habitação e às
escolas se torna num campo minado em que em vez de se discutirem os problemas concretos
logo se define que colocar determinada questão é discriminatório, passando com
fervor a discutir-se se A ou B é xenófobo. Patrões, professores e funcionários
estão entregues a si mesmos perante uma minoria que escudada nos conceitos de
comunidade exige de facto um tratamento diferenciado para impor a sua vontade
aos demais e retirar as maiores vantagens do sistema (não estou a falar apenas
dos radicais muçulmanos mas também deles).
Mesmo umas
prosaicas salsichas numa festa de escola infantil podem tornar-se em França no
pretexto para que algumas famílias, alegando que não comem carne de porco, não
só tenham direito, como é desejável, a uma comida diferente, mas acabem a impor
as suas regras a todos demais. Pois face à recusa destas famílias de partilharem
um grelhador onde tivessem estado carnes que consideram impuras, a alguns
professores não ocorreu melhor ideia que acabar a só servir salsichas halal. Ou
seja salsichas confecionadas com animais abatidos segundo os ritos da religião
muçulmana. Naturalmente esta decisão foi tomada e justificada em nome da
tolerância
Com aquela
espécie de complexo napoleónico de quem já teve um imperador e agora tem
presidentes em declínio, a França adotou perante os seus problemas a mesma
atitude que tem perante a crescente influência do mundo anglo-saxónico: fala de
exceções culturais, usa a retórica da “grandeur” e apresenta contabilidades
engenhosas para iludir a realidade. O resultado é catastrófico. Na rua a
realidade impõe-se. E na política, o país que prefere as revoluções às reformas
e que acha que o mundo em geral e a França em particular se ordenam por
declarações de vontade prepara-se para mais uma vez tentar suster a evolução da
economia e da História. Agora premiando eleitoralmente os radicais de direita.
De quem esperam exatamente o mesmo que esperaram quando a esquerda elegeu
Hollande: que façam leis que garantam à França um estatuto excepcional no mundo
e que portas adentro os consigam tirar desse inferno de intolerância a que em
nome da tolerância chegaram.
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