Helena Matos
Vão chorar a oportunidade
perdida, a falta de coragem. E, claro, vão dizer que não houve estadistas à
altura do problema. Falo obviamente da Segurança Social.
Sentados nos estúdios de
televisão vão dizer que foi falta de visão, que não houve coragem. Pior, que em
Portugal as coisas nunca se discutem a tempo. Alguns mais expeditos nestas
artes de passar por entre os pingos da chuva vão afivelar um ar compungido para
em seguida colocarem a génese do problema num tempo qualquer ideologicamente
útil; o Estado Novo, por exemplo. Mas o PREC e “esta austeridade” (como será
“aquela austeridade”?) também podem dar jeito.
Nos jornais, rádios, nas
justiceiras redes sociais o exercício vai repetir-se. No fim vão chorar a
oportunidade perdida, a falta de coragem. E, claro, vão dizer que não houve
estadistas à altura do problema. E vão dizê-lo com aquele ar de quem
naturalmente se considera à altura de tudo. E claro que têm pena, aliás sentem
uma pena imensa dos afectados pela tragédia. Temos pena – é o que terão para
dizer e nem por uma vez e nem por um segundo se deterão a apurar as suas
responsabilidades na tragédia que que comentam e contemplam. Falo obviamente da
Segurança Social ou mais propriamente dessa míriade de rostos que agora se
sobressaltam sempre alguém diz o óbvio: a não fazermos nada – e fazer alguma
coisa implica necessariamente cortar-se nas pensões mais altas agora a
pagamento – os actuais contribuintes da segurança social terão no dia em que se
reformarem pensões pouco mais que miseráveis.
Tudo isto é sabido há anos e
anos: o primeiro relatório sobre a (in)sustentabilidade da Segurança Social
remonta à década de 80 do século passado quando Diogo de Lucena e António
Borges fizeram um estudo sobre o assunto para o Governo então liderado por
Cavaco Silva. Muito simbolicamente o estudo não teve qualquer tipo de
divulgação pois os seus resultados eram assaz preocupantes. Quase trinta anos
depois o problema cresceu, tornou-se provavelmente na questão mais grave do
nosso tempo, mas nada mudou na forma infantil como os governantes nos tratam e
na hipocrisia que estrutura o seu discurso.
As recentes declarações de
Maria Luís sobre a necessidade de efectuar cortes nas pensões a pagamento
tornaram-se no pretexto para o exercício da mais pura mediocridade e do mais
acentuado populismo desse tipo de discurso. Marcelo Rebelo de Sousa declarou
como se estivesse a comentar o jogo Carcavelinhos-Berlengas: a ministra “é tão
competente a governar como incompetente a falar”. Porque se a ministra fosse
competente a falar calava-se obviamente. Então ela não sabe que vai haver
eleições e que nas campanhas eleitorais domina o faz de conta? Ela não sabe que
o bom político não é aquele que apresenta soluções para problemas reais mas sim
o que consegue criar um discurso que os nega? Realmente Maria Luís ignorou o
essencial: as tragédias em Portugal não são para evitar. São para lastimar.
Passos rapidamente arrepiou
caminho (40 por cento do eleitorado do PSD é composto por reformados!) e veio
dizer que no programa da coligação esse tema não será detalhado. Claro que isto
não escandaliza ninguém! A sustentabilidade da Segurança Social é provavelmente
a questão mais importante a que terá de de se acudir nos próximos anos mas
dizer que reformá-la implica ajustamentos é um crime. Já dizer que não se lhe
vai mexer, como afirmam a esquerda e o CDS, ou que não vai detalhar o que
pretende fazer nesta matéria, como fez Passos, isso não é escândalo. É sim
fazer política. E Costa, sem perceber sequer a dimensão do que estava a dizer
veio até declarar, como quem faz uma revelação matreira, que Maria Luís falou
verdade ao dizer que se têm de cortar as pensões a pagamento. A assistência
rejubilou porque desta vez o líder socialista tinha dito algo que pode
embaraçar o Governo: a ministra quer cortar as pensões!!! Felizes os
jornalistas transmitiram logo o soundbyte antecedido da explicação horrorizada:
a ministra das Finanças disse que têm de se cortar pensões.
Este exercício é tão patético
que é constrangedor escrever sobre ele. Mas é o que temos. Nada nesta sequência
de Ah!! e Oh!! seguidos de vários adjectivos e muitas indignações é novo e
sabe-se sempre como começa e como acaba: os mais indignados com as dúvidas
suscitadas pelos outros, os que têm mais certezas de que vai correr tudo bem,
os que não hesitam nos adjectivos na hora de classificar os que levantam
questões sobre a viabilidade de todo aquele universo radioso, esses serão os
primeiros a sair de cena quando as coisas começarem a correr mal. Alguns anos
depois fazem o tal exercício de falar da culpa. Dos outros naturalmente. E
depois tudo se repete porque nada se aprende com os erros cometidos.
O que está agora a acontecer
com a discussão sobre a Segurança Social parece decalcado daquilo a que agora
chamamos tragédia dos retornados. Em Abril de 1974 a descolonização ia ser algo
de verdadeiramente extraordinário. Duvidar da viabilidade do referendo
anunciado em que cada território ultramarino ia escolher o seu destino ou da democraticidade
dos líderes dos movimentos escolhidos por Portugal como interlocutores únicos
era além de sinal de reaccionarismo, sintoma de uma descrença imperdoável nas
capacidades das Forças Armadas, do povo e dos seus dirigentes. Quando começaram
a surgir os problemas foram-se dando como perdidas as promessas mas ai de quem
questionasse a forma como as decisões estavam a ser tomadas e apontasse as
responsabilidades de cada um dos auto-proclamados libertadores: só
colonialistas e fantoches do imperialismo podiam fazer tal coisa.
Quando o que fora anunciado
como um processo histórico único e superior se tornou numa tragédia, eles, os
anteriormente cheios de certezas, os proclamadores de um futuro radioso,
desapareceram literalmente de cena. Ou mais propriamente desapareceram daquela
cena porque outras cenas e outros palcos esperavam o seu brilhantismo, o seu
espírito libertador e a sua clarividência.
E é exactamente este processo
a que vamos assistir em matéria de sustentabilidade de segurança social: aqueles
que agora tanto se insurgem com a necessidade de fazer ajustamentos, aqueles
que têm a certeza de que basta o crescimento económico para resolver os
problemas, esses terão saído discretamente desta discussão quando dentro de
algum tempo a geração que agora sustenta a Segurança Social se confrontar com a
degradação do valor das pensões que irá receber.
Mas nada disso interessa. O
que interessa é que está estabelecido que dizer a verdade como fez Maria Luís
pode levar a perder as eleições porque numa lógica eleitoral completamente
dominada pelo populismo estabeleceu-se que há que mentir ao povo prometendo-lhe
sobretudo o que já se sabe não ser possível.
Como afirma Ribeiro Mendes,
secretário de Estado no governo de Guterres que tentou uma reforma da Segurança
Social e que viu como este discurso estraçalhou a tentativa de devolver
sustentabilidade ao sistema “Os custos reais ou imaginados das medidas da
reforma são agigantados mediaticamente e, por isso, aquelas podem soçobrar ou
ser esquecidas antes de executadas. As reputações políticas constroem‑se
fabricando imagens lisonjeiras para os imaginários
das várias clientelas eleitorais, recalcando tudo o que sugira esforço ou custo
social e pessoal, numa voragem ininterrupta de mediatização espectacular. Assim
sendo, a miragem de uma modernização totalmente indolor, asséptica e
convenientemente anestesiante veio antagonizar o custo incontornável das
reformas. A convergência destas clivagens originou uma fractura política
irreparável na base de apoio ao Governo, relativamente às principais reformas
estruturais completas.”
Trinta anos depois está tudo
na mesma. Ou melhor dizendo a Segurança Social está bem pior e o populismo,
esse, está triunfante.
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