segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

[As danações de Carina] Como o Rei e o Peão guardados na mesma caixa...

Carina Bratt

Final de semana no mato. Mato mesmo, para qualquer lugar que se olhe. Estou no Sítio Shangri-Lá, de meu patrão Aparecido. Silêncio absoluto, sem as interferências nocivas das grandes cidades. A mim, em particular, esta fuga oportuna, está me fazendo um bem danado.

Amo. Amo de paixão estas escapatórias sem aviso prévio, sem bilhetes dando contas a terceiros. Faz tempo venho tentando me apartar desta loucura desenfreada do dia a dia. Das corridas, dos problemas, das pessoas chatas, dos telefonemas intermináveis e enervantes das redes sociais. Por falar em redes sociais, esta droga me atinge diretamente o centro nevrálgico e, de certa forma, me torna uma espécie de monstro dos abrutalhados pré-históricos.

Não há nada mais nojento que as redes sociais. Por elas, e em nome de suas teias, acabou o que se conhecia por privacidade das pessoas. O ser humano, como um todo, jogou no ralo a sua compostura, o seu recato, o seu discernimento. A sua individualidade. Cada um, em particular, demoliu a sua identidade, assolou o seu momento de sossego. O “eu” geral de cada ser vivente virou um amontoado de imundícies, onde se armazenou uma torre enorme de entulhos e excrementos da pior espécie. Em nome do progresso, o ser pensante (pensante?!) se tornou escravo da sua imbecilidade. Escravo, aqui entendido, na maneira mais absurda da expressão conhecida desta palavra. Dento desta estupidez, a poesia que emanava da alma, se desqualificou nas confusões dos Facebook, dos Twitter, dos Instagram, Blog, Iphoneogran e WhatsApp, entre outras frivolidades surgidas. É o progresso nos amplexando assoladamente.

Daqui do meio do mato, metida até o pescoço dentro do nada que me faça lembrar as cidades assassinas, suas correrias e barbaridades, longe da terra, do mundo, dos inconvenientes, dos pegajosos, das campainhas, das buzinas, entre árvores, folhas, plantas, bananeiras, laranjais, cafezais e orquídeas, me sinto renovada. Entrelaçada à terra bruta, entremeada a maracujás apanhados no pé, a mangas chupadas à sombra da própria árvore, me reconforto interiormente. Curo as feridas que esfolam e sangram. Trato as mazelas que me atormentam. Harmonizo o cansaço que não dá folga um minuto sequer. Faço uma espécie de raio x de cabo a rabo do meu cotidiano de merda. Consigo vislumbrar através das chapas eletromagnéticas, o avesso do meu recôndito cansado. Esgotado. Do coração em pedaços e aos prantos. Do sangue correndo desesperado. Tudo em mim parece sem cor, desconexo, frio, gélido, irrecuperável...

Todavia, reparo com imensa alegria e satisfação, o pouco que caminhei sem eira nem beira, abraçada às horas da manhã, os pés descalços, sem meias e sapatos apertados. Na carcaça um shortinho de lycra encimado por uma camisa rasgada, aderida ao conforto do solo batido, ajudou um pouco (um pouco não, muito) a melhorar o quadro lúgubre das minhas tristezas internas. Das frustrações que se instalaram e criaram formas múltiplas, contudo vazias e caóticas. Até antes de chegar aqui –, eu me sentia velha, cansada, malparida, mal-acabada.

Assemelhava, bem sei, a uma lagartixa assustada deslizando parede acima, sem rumo certo. Sem norte preestabelecido. Meu corpo todo parecia irmanado na mesma sensação de indefinida desgraça – dores aqui e ali, apoquentações e flagelos acolá, despejando sintomas inconsequentes na solidão ímpar que insistia em não dar tréguas.

O mutismo do lugar, a singeleza da morada simples, das portas e janelas sem chaves e cadeados, sem luz elétrica, a escuridão cálida das noites sendo vencidas por lampiões a querosene, a fumaça forte do fogão à lenha, as panelas volatizando sobre ele cercadas pelo cheiro do calcinado, me avivou o que parecia sem vida, desfalecido e morto. Floriu com cores novas a esperança desbotada e mortiça. Fez urgir em meu semblante um bafejar restaurado, um sorriso diferente no rosto embalsamado, enquanto os olhos sem o viço se alegraram por não respirarem os hipotéticos das estagnações, não só das estagnações, igualmente, da vida repetida revisitada minuto a minuto, segundo a segundo.

Percebo que me envolvi no todo do lugar e me absolvi da leveza metafísica que encanta o espírito, tirando dele os desdouros do cansaço, e soprando para aquém do mensurável as brumas negras do descontentamento e da infelicidade. Me pego renovada, leve, solta, a estrutura aliviada dos estresses maçantes. Devo considerar que esta fuga momentânea, inexplicável, sem nexo, sem rumo, sem resguardo, à mercê do destino servirá, ou melhor, serviu para livrar meu âmago doente, da UTI das inconveniências. “Meu todo”, carne e osso, osso e carne se refez de certas dores alojadas. Algo sublime vestiu a minha alma de lábaros festivos e, como num abrir e piscar de vistas renasci de novo. Como a mitológica Fênix, me reascendi, me reavivei por inteira, me solidifiquei para o amanhã e para o depois de... que ainda dormem tranquilos no sono brando dos meus devaneios mais enternecidos e sensíveis.

Meio do mato.  Sítio do meu patrão Aparecido. Silêncio absoluto. Na pista recém-asfaltada, o Learjet executivo virou um pássaro sem a magia do infinito. Os dois pilotos que trabalham para nós, pescam no rio que corta a propriedade enquanto suas namoradas preparam o almoço junto com os outros empregados da quinta. Paraíso. Um Éden sem Adão e sem Eva. Receita perfeita da doutora natureza, divorciada dos simulacros das tarjas pretas para as indisposições e padecimentos que estavam acabando comigo, pouco a pouco, numa sinfonia piramidal, fúnebre, num vilipêndio de cadáver caminhando para a sepultura em câmera lenta.

Não temos dia certo para retorno às selvas de pedras. De qualquer forma, a hora que for, voltarei esvaziada, desabitada, ociosa de aflições e tribulações. Chegarei ao “meu presente rotineiro” vazia de agruras, custeada por fluidos benfazejos. Retornarei inebriada pelas delicadezas e branduras dos matos e das matas virgens.  Na bolsa de viagem guardada a sete chaves, a taciturnidade das noites longas e estreladas. Como isto aqui é lindo! Daqui vislumbro o Cruzeiro do Sul tão perto, tão próximo que poderia ser alcançado com as mãos. Aportarei de volta ao meu lar, viva e feliz. Realizada me achegarei dona de mim e do pedaço. Pronta para reassumir os afazeres circunspectos que se desacomodaram e partiram em busca de outros encostos. Não importa. Estou refeita, reparada, regenerada, melhorada.

Reformulada dos fios de cabelos às pontas dos dedos, pronta para mais uma semana, a sobreviver pelejando intensamente com as crueldades infaustas e pesarosas das “cotidianavidades” da vida. Numa avaliação rápida da minha existência neste planeta, quero concluir as minhas “Danações” dizendo o seguinte: todos nós, indistintamente somos como peças de um enorme tabuleiro de xadrez. No final do jogo, no derradeiro das nossas vidas, reis e peões, cavalos e damas, ricos e pobres, são guardados na mesma caixa. Boa semana a todos.
Título e Texto: Carina Bratt, do Sítio Shangri-Lá “Um lugar perdido do meio do nada”. 9-12-2018

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