Carina Bratt
Final de semana no mato. Mato
mesmo, para qualquer lugar que se olhe. Estou no Sítio Shangri-Lá, de meu
patrão Aparecido. Silêncio absoluto, sem as interferências nocivas das grandes
cidades. A mim, em particular, esta fuga oportuna, está me fazendo um bem
danado.
Amo. Amo de paixão estas
escapatórias sem aviso prévio, sem bilhetes dando contas a terceiros. Faz tempo
venho tentando me apartar desta loucura desenfreada do dia a dia. Das corridas,
dos problemas, das pessoas chatas, dos telefonemas intermináveis e enervantes
das redes sociais. Por falar em redes sociais, esta droga me atinge diretamente
o centro nevrálgico e, de certa forma, me torna uma espécie de monstro dos
abrutalhados pré-históricos.
Não há nada mais nojento que
as redes sociais. Por elas, e em nome de suas teias, acabou o que se conhecia
por privacidade das pessoas. O ser humano, como um todo, jogou no ralo a sua
compostura, o seu recato, o seu discernimento. A sua individualidade. Cada um,
em particular, demoliu a sua identidade, assolou o seu momento de sossego. O
“eu” geral de cada ser vivente virou um amontoado de imundícies, onde se
armazenou uma torre enorme de entulhos e excrementos da pior espécie. Em nome
do progresso, o ser pensante (pensante?!) se tornou escravo da sua imbecilidade.
Escravo, aqui entendido, na maneira mais absurda da expressão conhecida desta
palavra. Dento desta estupidez, a poesia que emanava da alma, se desqualificou
nas confusões dos Facebook, dos Twitter, dos Instagram, Blog, Iphoneogran e
WhatsApp, entre outras frivolidades surgidas. É o progresso nos amplexando
assoladamente.
Daqui do meio do mato, metida
até o pescoço dentro do nada que me faça lembrar as cidades assassinas, suas
correrias e barbaridades, longe da terra, do mundo, dos inconvenientes, dos
pegajosos, das campainhas, das buzinas, entre árvores, folhas, plantas,
bananeiras, laranjais, cafezais e orquídeas, me sinto renovada. Entrelaçada à
terra bruta, entremeada a maracujás apanhados no pé, a mangas chupadas à sombra
da própria árvore, me reconforto interiormente. Curo as feridas que esfolam e
sangram. Trato as mazelas que me atormentam. Harmonizo o cansaço que não dá
folga um minuto sequer. Faço uma espécie de raio x de cabo a rabo do meu
cotidiano de merda. Consigo vislumbrar através das chapas eletromagnéticas, o
avesso do meu recôndito cansado. Esgotado. Do coração em pedaços e aos prantos.
Do sangue correndo desesperado. Tudo em mim parece sem cor, desconexo, frio,
gélido, irrecuperável...
Todavia, reparo com imensa
alegria e satisfação, o pouco que caminhei sem eira nem beira, abraçada às
horas da manhã, os pés descalços, sem meias e sapatos apertados. Na carcaça um
shortinho de lycra encimado por uma camisa rasgada, aderida ao conforto do solo
batido, ajudou um pouco (um pouco não, muito) a melhorar o quadro lúgubre das
minhas tristezas internas. Das frustrações que se instalaram e criaram formas
múltiplas, contudo vazias e caóticas. Até antes de chegar aqui –, eu me sentia
velha, cansada, malparida, mal-acabada.
Assemelhava, bem sei, a uma
lagartixa assustada deslizando parede acima, sem rumo certo. Sem norte
preestabelecido. Meu corpo todo parecia irmanado na mesma sensação de
indefinida desgraça – dores aqui e ali, apoquentações e flagelos acolá,
despejando sintomas inconsequentes na solidão ímpar que insistia em não dar
tréguas.
O mutismo do lugar, a
singeleza da morada simples, das portas e janelas sem chaves e cadeados, sem
luz elétrica, a escuridão cálida das noites sendo vencidas por lampiões a
querosene, a fumaça forte do fogão à lenha, as panelas volatizando sobre ele
cercadas pelo cheiro do calcinado, me avivou o que parecia sem vida,
desfalecido e morto. Floriu com cores novas a esperança desbotada e mortiça.
Fez urgir em meu semblante um bafejar restaurado, um sorriso diferente no rosto
embalsamado, enquanto os olhos sem o viço se alegraram por não respirarem os
hipotéticos das estagnações, não só das estagnações, igualmente, da vida
repetida revisitada minuto a minuto, segundo a segundo.
Percebo que me envolvi no todo
do lugar e me absolvi da leveza metafísica que encanta o espírito, tirando dele
os desdouros do cansaço, e soprando para aquém do mensurável as brumas negras
do descontentamento e da infelicidade. Me pego renovada, leve, solta, a
estrutura aliviada dos estresses maçantes. Devo considerar que esta fuga
momentânea, inexplicável, sem nexo, sem rumo, sem resguardo, à mercê do destino
servirá, ou melhor, serviu para livrar meu âmago doente, da UTI das
inconveniências. “Meu todo”, carne e osso, osso e carne se refez de certas
dores alojadas. Algo sublime vestiu a minha alma de lábaros festivos e, como
num abrir e piscar de vistas renasci de novo. Como a mitológica Fênix, me
reascendi, me reavivei por inteira, me solidifiquei para o amanhã e para o
depois de... que ainda dormem tranquilos no sono brando dos meus devaneios mais
enternecidos e sensíveis.
Meio do mato. Sítio do meu patrão Aparecido. Silêncio
absoluto. Na pista recém-asfaltada, o Learjet executivo virou um pássaro sem a
magia do infinito. Os dois pilotos que trabalham para nós, pescam no rio que
corta a propriedade enquanto suas namoradas preparam o almoço junto com os
outros empregados da quinta. Paraíso. Um Éden sem Adão e sem Eva. Receita
perfeita da doutora natureza, divorciada dos simulacros das tarjas pretas para
as indisposições e padecimentos que estavam acabando comigo, pouco a pouco,
numa sinfonia piramidal, fúnebre, num vilipêndio de cadáver caminhando para a
sepultura em câmera lenta.
Não temos dia certo para
retorno às selvas de pedras. De qualquer forma, a hora que for, voltarei
esvaziada, desabitada, ociosa de aflições e tribulações. Chegarei ao “meu
presente rotineiro” vazia de agruras, custeada por fluidos benfazejos.
Retornarei inebriada pelas delicadezas e branduras dos matos e das matas
virgens. Na bolsa de viagem guardada a
sete chaves, a taciturnidade das noites longas e estreladas. Como isto aqui é
lindo! Daqui vislumbro o Cruzeiro do Sul tão perto, tão próximo que poderia ser
alcançado com as mãos. Aportarei de volta ao meu lar, viva e feliz. Realizada
me achegarei dona de mim e do pedaço. Pronta para reassumir os afazeres
circunspectos que se desacomodaram e partiram em busca de outros encostos. Não
importa. Estou refeita, reparada, regenerada, melhorada.
Reformulada dos fios de
cabelos às pontas dos dedos, pronta para mais uma semana, a sobreviver
pelejando intensamente com as crueldades infaustas e pesarosas das
“cotidianavidades” da vida. Numa avaliação rápida da minha existência neste
planeta, quero concluir as minhas “Danações” dizendo o seguinte: todos nós,
indistintamente somos como peças de um enorme tabuleiro de xadrez. No final do
jogo, no derradeiro das nossas vidas, reis e peões, cavalos e damas, ricos e
pobres, são guardados na mesma caixa. Boa semana a todos.
Título e Texto: Carina Bratt, do Sítio Shangri-Lá “Um
lugar perdido do meio do nada”. 9-12-2018
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