O exercício que se segue testa o seu
respeito pelos deveres de consciência e pela liberdade de pensar.
Gabriel Mithá Ribeiro
Da observação à
hipótese: a experiencia he madre das cousas
Vivi uma infância tranquila no
Império Colonial Português. Afastei-me dela aquando da revolução comunista que
deixará sequelas no meu país natal por séculos, tal como a França ainda lambe
as feridas da revolução de 1789. Vivi os dias da expulsão de meio milhão de
portugueses dos antigos territórios ultramarinos tipificada, em Moçambique,
pelo decreto 24/20, de inícios de 1975, medida do então Governo de
Transição da Frelimo que determinava que essas pessoas tinham de abandonar o país
onde viviam, por vezes por mais de uma geração, em 24 horas com direito a 20
quilogramas de bagagem por pessoa, o limite máximo de carga permitido nas
viagens aéreas para Lisboa, a isso se resumindo os seus direitos de
propriedade, eles que transformaram matos em cidades e bairros, como aquele
onde eu vivia nos arredores de Lourenço Marques/Maputo, hoje varrido pela
degradação e insegurança.
Nasci numa família remediada
apolitizada cujos avós africanos, árabes e indianos encontraram na sua miséria
e na ousadia de desbravar matos as forças do seu ganha-pão, atitude prosseguida
pelo meu pai mulato, que impôs a si mesmo o dever de estudar até ao quinto ano
dos liceus no tempo colonial, e pela minha mãe mestiça que, desde menina
islâmica nascida na África mais recôndita, estudou e fez-se auxiliar de
enfermagem, depois parteira, casal que se tornou proprietário de uma vivenda
modesta onde, na minha infância, havia dois automóveis, família que,
repentinamente, teve de recomeçar a vida com a roupa do corpo numa barraca da
Lisboa miserável.
Aos quinze anos já trabalhava
nas obras nas férias grandes, às vezes também nas outras, de onde saí para a
sala de aula como docente. Tempos da guerra fria que, mais tarde, compreendi
serem a causa da desregulação da minha vida e da de biliões de pessoas.
Atravessei as transformações do modelo de família, da (muito) alargada à
nuclear e desta à monoparental, incluindo fórmulas historicamente inabituais.
Entrei pela primeira vez numa
sala de aula em 1971 para, no meio século seguinte e sempre no seu interior,
testemunhar a degradação continuada da instituição-escola até se tornar palco
de boçalidades e violências que desconhecia na África oprimida ou
no quotidiano do meu bairro da lata de inícios dos anos oitenta. No meu
quotidiano, num par de décadas vi crescer e, depois, caminhar para uma
continuada degradação social, urbanística, de segurança os sovietes da
Amora-Seixal e de Almada, na Grande Lisboa. Poderia acrescentar outros detalhes.
Um ciclo de vida determinado
pela imposição sempre ascendente dos ideais de esquerda, o que se foi
refletindo na multiplicidade de pessoas com as quais fui convivendo. Do idoso
tradicional ao novo-rico revolucionário da minha África natal que continuei a
visitar, do trolha semialfabetizado ao chique-sabão-globalista-sedentário, do
toxicodependente ao catequista, do negro ao branco, do indígena ao imigrante,
do jovem estudante ao catedrático, entre inúmeras variantes.
Entretanto, fui articulando a
escola da vida com o conhecimento dos livros e com uma investigação empírica
longa, entre 1997 e 2015, que me fez dialogar com largas centenas de pessoas
comuns sobre o sentido do seu tempo de vida. Tudo isso refletido nos livros que
fui publicando.
Chegou o tempo de um balanço
cujo rigor implica um método. Observei o fenômeno e fiz o seu registo, com
contraprovas, no tempo e no espaço. Formulo agora a hipótese explicativa: todas
as pessoas de esquerda são más, mas nem todas as pessoas más são de esquerda.
Se validada, poderei estabelecer um princípio ou inferência universalmente
aplicável.
A validação da hipótese
Está comprovado que a pulsão
sociopata da mente delinquente, quando alimentada por pretextos políticos e
sociais autojustificativos, pode transitar do sujeito individual para o sujeito
coletivo. É o que explica a pulsão homicida da mente estalinista, da mente nazi
ou da mente terrorista, perversões coletivas da natureza humana que exigem
tempo para serem compreendidas pelas próprias sociedades.
Não encontro razões válidas
para abordar de modo distinto a propensão sociocida da mente de esquerda.
Vladimir Lenine conquistou um lugar ímpar no século XX ao ter transformado a
sua patologia narcísica num fenômeno social, depois mundial. Além de patrono
moral e intelectual da esquerda, da estalinista à moderada, o pai da revolução
russa de outubro de 1917 representa o gênio do mal que antecede e suplanta
todos os demais, Hitler incluído.
Foi Lenine quem legou a crença
distópica no poder absoluto da razão contrário à natureza transcendental do ser
humano herdada das mais remotas origens. Aquela significa pressupor que a
dignidade humana só tem presente e não tem um passado milenar, que as pessoas
podem viver da razão sem fé, que as suas cabeças podem existir desligadas do
coração, que podem raciocinar sem sentir. Ao ir além da teoria, da dúvida ou do
questionamento para consumar tal crença, o sujeito mutila a plenitude da
condição humana correndo o risco de se fazer deus de si mesmo.
Do modo mais radical e
violento de sempre, Lenine concretizou essa distopia narcísica que passou a
modelar o nosso tempo à imagem e semelhança do seu criador. Tornou-se
lugar-comum admitir que os indivíduos existem aprioristicamente fragmentados
entre opressores e oprimidos, ideal de sociedade
que as esquerdas, das revolucionárias às reformistas, mantêm vivo.
Ele impõe o aprisionamento da
empatia apenas num dos lados, no do oprimido, e sequestra o outro
lado, o do opressor, num ódio compulsivo, uma vez que essa semi-empatia (reservada
aos meus) ou empatia-ódio vive desfiliada do
pressuposto da unidade do gênero humano e, consequentemente, da consciência da
transversalidade individual e social das virtudes e vícios humanos. Esse é o caminho
de desumanização da espécie.
Dele nasceu o sujeito que não
sente a consciência pesada por ambicionar fazer desaparecer burgueses, ricos, patrões, cristãos, privilegiados, brancos, Israel, Ocidente,
ambição revertida na repulsa primária a Trump, Bolsonaro, Salvini, Orban, Johnson, André
Ventura, entre outros. É o sujeito que se socorre de qualquer pretexto,
mínimo que seja, para julgar, aqui e agora, os alvos do seu ódio compulsivo.
Todavia, apenas admite ser
julgado num futuro que nunca chega. Quanto mais julga os outros, tanto mais se
exclui a si mesmo de julgamentos justos nos mesmos termos. Daí que nunca chegue
a ser um sujeito moral. A sua existência foi determinada, na origem, por
Lenine: «Acuse-os do que você faz, insulte-os do que você é», como
explica Olavo de Carvalho. O seu perfil mental não é compatível com a
liberdade, democracia, tranquilidade social, vida coletiva próspera e
civilizada, ao mesmo tempo que o narcisismo patológico faz dele parasita exímio
de tais rótulos.
Contra ele funciona a prova de
fogo do sujeito moral, a passagem do tempo que nunca se deixa enganar.
Para esse sociocida narcísico,
a morte de um único indivíduo, uma causa minúscula, um mero incidente podem
levá-lo ao fim do mundo em busca de justiça. Fazem-no mover montanhas. O
problema é que esse ideal de justiça vive paredes-meias com o seu exato
contrário, a tolerância não menos radical a injustiças que não se enquadrem na
sua redoma mental e que crescem à medida do seu sucesso.
Podem morrer milhões em
massacres e genocídios; podem outros tantos milhões viver subjugados à
opressão, crimes, assassinatos, miséria, fome; podem meio milhão de
compatriotas seus serem expulsos da terra onde viviam ou nasceram arrastando
traumas de violações, sevícias, expropriações, cadáveres de familiares aos
quais se juntarão, nas guerras civis que se sucederam, mais uns quantos milhões
de mortos; podem as pessoas queixar-se, anos a fio, do agravamento continuado
da insegurança no subúrbio onde habitam; podem a indisciplina e a violência
escolares crescer a cada nova geração, e os docentes entrarem em depressão ao
mesmo ritmo; podem os polícias ser humilhados ao longo de uma vida, sintoma
refletido nos suicídios na profissão; podem os governos deixar dívidas
soberanas astronômicas que subvertem a obrigação moral de cada geração legar à
seguinte mais patrimônio e riqueza do que recebeu; podem as instituições
públicas resvalar para estádios de degradação décadas a fio; pode o perdedor
das eleições usurpar o poder, repetindo Lenine, ou nunca se conformar com as
escolhas livres dos eleitores; podem certas minorias intimidar, roubar ou
espancar terceiros; podem os parasitas morais multiplicar-se a coberto dos
apoios estatais; pode a ignorância letrada grassar nas universidades; podem as
condições socioeconômicas contradizer as promessas a cada eleição; podem os
povos queixar-se da violação reiterada da sua dignidade ou das suas fronteiras
morais, identitárias ou físicas; pode o mal ganhar raízes – e nada disso
perturbar a consciência das pessoas de esquerda por não coincidir com os seus
ideais de autoadoração grupal.
O princípio
estabelecido: todas as pessoas de esquerda são sociocidas
Não existe um único sujeito de
esquerda que não se enquadre na categoria considerada, a dos sociocidas
instigadores de males coletivos como a miséria ou a violência. E quem disse que
essas pessoas más, como as demais, não têm direito à vida e à dignidade? Têm é
de se corrigir. Obrigação delas. Mas também dever das demais não fecharem os
olhos à maldade humana.
Título e Texto: Gabriel
Mithá Ribeiro, Professor, investigador e ensaísta, doutorado em Estudos
Africanos, Observador,
10-6-2020, 0h04
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ResponderExcluirO QUE JUSTIFICA O CONCEITO PRECONCEITUOSO , (TAMBEM CITADO NO TEXTO!)...todas as pessoas de esquerda são más, mas nem todas as pessoas más são de esquerda."
JÁ QUE É IMPOSSIVEL , QUE O MESMO CONHEÇA TODAS AS PESSOAS DE ESQUERDA!
Professor, agradeço o link no corpo do seu texto.
ResponderExcluirTentei deixar um comentário lá no Observador. E, mais uma vez, deu erro. Estranhei, não era a primeira vez. E então descobri que sou um “autor removido do sistema”(!?).
Muito provavelmente terá sido porque escrevi que a redação do Observador é uma bonequinha de ventríloquo da socialista agência Lusa. 😉
PROFESSOR MITHÁ,
ResponderExcluirAntes de comentar me considero ATEU.
Fui batizado, crismado, fiz comunhão, fui coroinha, estudei em colégio lassalista, fiz curso de noivos turbulento e casei dentro da igreja católica para contentar as famílias.
Nessa minha vida creio eu que já li a Bíblia muito mais do que alguns que se dizem religiosos.
Sou meio grosso porque detesto burrice.
Quem não lê os contraditório não pode fazer alusões a ele.
Por isso escrevi num tópico que democracia é utopia, r se torna mais utópica quando acham que ela é libertária.
Sou fã incondicional de DUVERGER.
Considero o passado uma roupa velha que não nos serve mais.
Hoje se especula muito uma tal de direita e esquerda que não existem mais.
Hoje debatemos entre liberais e conservadores, mais aproveitadores que se autodenominam de centro.
Os WHIGS forma os primeiros a se intitularem liberais na antiga Inglaterra.
Hoje os gramscistas bradam em alta voz que são contra os fascistas, nazistas e comunistas.
Chinese, indianos e singapurianos não ligam para o voto eles ligam é para o consumo.
Quem trabalha e é do partido CONSOME, o resto morre de fome.
Todos filósofos do mundo já disseram besteiras.
Como já contei e sou fã de ROBERT OWEN e sua cidade NEW HARMONY construída para seus funcionários e que a destruíram.
A história assemelha-se a vida de RUBEN BERTA, funcionários e governos destruíram a VARIG.
Por isso o mundo todo tem LIBERDADE ASSISTIDA.
O povo em geral é ANARQUISTA ou SUBSERVIENTE.
Os primeiros incitam os segundos que as vezes não sabem pelo que lutam.
Se pela utopia da democracia, ou pela liberdade.
Minha luta é inglória, luto pela isonomia de direitos e deveres muito masi importante que democracia e liberdade, essa é a luta justa para o mundo.
Com escrevia Nietsche, o homem é niilista.
fui...
M B !
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