domingo, 22 de novembro de 2020

[As danações de Carina] Ainda agora, à espera de um BIS

Carina Bratt

Todas as coisas boas deveriam ter bis’. 
José Mauro de Vasconcelos, em ‘O Palácio Japonês’. 

Às vezes, na minha saudade
, ainda tenho a impressão de que continuo a ser uma criança de cinco para seis anos. Que meu pai Francisco, logo pela manhã, depois do café, me levará no colo, para ver o rio lá de cima da ponte de ferro. Eu tinha medo desse rio que corria lá embaixo e, visto de cima da ponte de ferro, parecia que ele ficava mais tenebroso, com suas águas escuras correndo ligeiras em direção à algum lugar que eu imaginava ficasse muito longe, num distante que eu nem imaginava às portas de acesso aos seus cafundós. Nos braços de papai, grudada no seu pescoço, eu me sentia segura. 

Não temia a correnteza, nem a ponte alta, tampouco o barulho ensurdecedor das águas cobrindo um amontoado de pequenas ilhas ao longo do leito tortuoso. Na verdade, minúsculos arquipélagos com suas pontas visíveis que mergulhavam e depois sumiam e depois tornavam a desmergulhar e voltavam à superfície, de acordo com o volume da corredeira que descambava desde a nascente, esta extremada numa cadeia de montanhas tão dimensificadas, que me dava a impressão de tocar as nuvens. 

Quando eu tremia, papai Francisco me abraçava contra si, imprimindo uma força maior, tipo um aconchego que me envolvia, da cabeça aos pés, que me involucrava de um jeito que fazia qualquer medo, por mais insegura ou temerosa que eu ficasse, fugir às carreiras e, como um vento ameno e aprazente, fagueiro e hospedeiro, apenas passasse tocando de leve, as raizes de meus cabelos. No minuto seguinte, tudo se fazia em silêncio, algo inexplicável num mágico que me cobria o corpo frágil, colocando, nele, uma calmaria que inebriava a alma e aquietava o meu coração. 

Papai sempre foi o meu observador sorridente desde os meus primórdios ensaios madrigais. O fio condutor que ligava a minha infância às sendas de um amanhã diferenciado, sem os percalços de momentos ruins, destemorosa de um porvir que eu desconhecia completamente, mas que ele, me fazia acreditar, seria bem melhor e maior, do que aquela vidinha pacata que vivíamos naquele pedacinho desmilinguido de um paraíso escondido de tudo, sobretudo de tudo que tivesse o cheiro acre das desgraças da modernidade. 

Papai se mostrou, desde que me entendo por gente, um sonhador inveterado. Declamava versos folclóricos de poetas famosos, recitava Fernando Pessoa e Cora Coralina com a mesma precisão com que comandava um quartel inteiro, onde um bando enorme de soldados iniciantes à carreira militar, passava os dias inteiros sob a sua guarda e jurisdição. Nas tardes de domingo (quando não estava albergado no batalhão), eu, ele e mamãe, íamos caminhar além da ponte de ferro sobre o rio das minhas apreensões e assombramentos. 

Além da ponte, do rio e das águas, morava meus avós paternos: vovô Silvério e Vovó Priscila. Assim que chegávamos, éramos recebidos com café feito na hora e uma mesa farta de guloseimas as mais variadas. Papai passava a mão no violão e soltava a voz imitando Onéssimo Gomes. Meu velho tinha todos os discos deste cantor, os famosos 78 rotações e mais de vinte bolachões, cada um com doze faixas. Ainda me lembro de uma que ele cantava sempre, fazendo corte à mamãe, senhora dona Bratt. 

"Oh, lua branca de fulgores e de encantos 
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo 
Vem tirar dos olhos meus o pranto 
Ai vem matar esta paixão que anda comigo 
Oh, por quem és, desce do céu, oh, lua branca 
Essa amargura do meu peito oh, vem arranca 
Dá-me o luar da tua compaixão 
Oh, vem por Deus, iluminar meu coração...”. 

Minha mãe Marcela e vovó Priscila, sentadas uma ao lado da outra, viajavam nas asas desta canção, enquanto vovô Silvério, se atinha a preparar a carne do churrasco saboroso, que deixava no ar, uma fumacinha branca e pálida, que me trazia à baila fantasmas se esvaindo, assustados, em direção ao infinito. O fato é que, da pequenez dos meus poucos anos de vida, havia uma beleza ímpar e intocável, como uma dádiva que o Criador mandava e que nos mantinha unidos e cativos da sua presença tranquila e imorredoura. 

Sem dúvida alguma, dia seguinte, seríamos o principal assunto na sala onde os anjos celestiais se reuniam ao redor do Altíssimo para as primeiras refeições. De volta, quase nove da noite, a ponte se interpunha, de novo, no nosso caminho. No meu caminho. Evidentemente que não me terrificava. Eu voltava dormindo, no colo de papai, com mamãe ao lado, uma taciturnidade se fazendo tangível a penetrar as solas de nossos passos, como se quisessem sufocá-los. A infância passou, os anos se foram embrulhados em pasmaceiras e rememorações. 

O agora, o hoje, o meu agora agora, se fez mais denso, caindo como estrelas expulsas da sua constelação natural. Eu cresci e me fiz adulta. Mulher feita, pronta, apta a encarar os contratempos e estorvos, as amofinações e as incomodidades do meu destino. Hoje, ou mais precisamente o agora, à intervalos de poucas noites (apesar de tantos anos consumidos, ainda recordo nitidamente da ponte de ferro sobre o rio, ainda rememoro meus medos, toco as águas, agasalho meus pesadelos... Todos eles incrivelmente desenhandos, na luz dos holofotes das minhas eternas figuras circunspectas. 

Circunspectas, entretanto, cautelosas e prudentes. De quando em quando, confesso, um choro atrelado às palavras que eu queria dizer e não consigo, como se encarceradas dentro de meu âmago, como diria, a título de exemplo, aprisionadas como sal em saleiro entupido, me deixam sem lágrimas, sem ação, sem voz. Papai Francisco, mamãe Marcela, vovô Silvério, vovó Priscila me magoam com o receio de vê-los sendo tragados pela correnteza do rio sobre a ponte de ferro... Meu Deus, eu não me recordo de ter ultrapassado a ponte sozinha, ou caído de cima do seu pedestal... 

Com certeza, de alguma outra forma, eu mergulhei nas águas gélidas que passaram e ainda passam por debaixo dela. Me sinto, por assim dizer, às vezes, como uma empregada fútil que deixou cair um copo que se espatifou diante da patroa chata. Me vejo, ainda agora, neste hoje incompleto, deturpado, papai me dando petelecos na cabeça e eu me deitando em seu ombro, chupando o dedo polegar. Este meu misterioso senso de tempo segue correndo contra o tempo, voando contra o meu tempo. Dentro dele, algo divorciado da minha realidade, me trouxe, a contragosto, para um futuro que jamais imaginei construir. Estou, a bem da verdade, à deriva: à espera de que a vida me conceda um milagre. 

Título e Texto: Carina Bratt, de São Paulo, Capital, 22-11-2020

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