sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Renúncia

Aparecido Raimundo de Souza

FICOU PÁLIDA AQUELA TARDE de domingo, quando parti de casa contradizendo todas as opiniões familiares. Por ser jovem, achava poder viver só a minha vida, sem as interferênciação de terceiros. Na verdade, conhecia pouco de mim mesmo. Da vida, lá fora, menos ainda. Mas, já que havia transposto os umbrais da porta, achei que, como homem, precisava levar em frente aquela absurdez de resolução.

E segui avante, não me lembrando de olhar para trás. Se o fizesse, sabia,  encontraria  duas lágrimas turvando a visão materna naquele rosto brejeiro que, em súplicas, implorava meu regresso. Apesar de tudo, ergui a cabeça,   afastei as tristezas, sacudí  os maus pensamentos e me pus à caminho. Num repente, todo o mundo maravilhoso, que supunha ter em mãos, pareceu pesar momentaneamente na minha decisão.

Agora, bem sabia, se tornara demasiadamente tarde para regressar ao lar, àquele canto de harmonia e paz, onde nunca faltara o amparo fraterno. Abriam-se, diante de mim, como um leque, as portas daquele paraíso com o qual eu sonhava todas as noites, na minha louca imaginação de adolescente desatinado e senhor de tudo. Enfim, poderia realizar meus sonhos. E que sonhos eram esses?

Por primeiro, me  sentir independente e autônomo. Por segundo, ser eu mesmo, me sentir senhor de mim e de meu nariz. Na verdadeira acepção da palavra, comandante  dos meus proprios atos. A essência da juventude reside exatamente nessa minúscula insignificância: ela, por si só, poder levar adiante seus anseios e devaneios, sonhos e frustrações, sem encontrar a barreira do presente ditando normas.

Dito de maneira mais objetiva: ninguém pretende ter a vida inteira o dedo firme do pai severo lhe apontando a direção a ser seguida. Tampouco a orientação madura da mãe, mergulhada em prantos, cada um, a sua maneira, tentando mostrar o melhor caminho a ser seguido. Isso é a família. De um modo geral, a família ela representa  o esteio sólido, o porto seguro, a terra firme onde se deve pisar sem medo de enfrentar as intempéries da vida futura.

O fato é que, naquela época, pouco estava me importando com essas baboseiras. Queria ir em frente. Caminhar sozinho, andar  por estradas pisando os erros que viessem a ser cometidos e me livrar deles sem a ajuda de quem quer que fosse. Mostrar aos meus velhos e demais integrantes superados da família, que os tempos de outrora não se constituíam em motivos para celeumas e tantas e não sei quantas conversas fora de esquadro. 

Queria, no fundo, pretendia provar a meus pais que me tornara auto-suficiente, o bastante,  independente para enfrentar, sozinho, os contratempos do velho mundo, bem como as incertezas do novos horizontes que se abriam  ao meu deslumbramento,  numa espécie de  leque de mil tentáculos e estavam logo ali.  Bastava passar do portão da casa onde vivera desde que me conhecia por gente.  Por outro lado, intencionava meter na cabeça de cada um dos meus irmãos que há muito deixara de ser  um fraco e opprimido menino de escola.

A bem da verdade, a elevada confiança e a garra que depositava em mim, me davam forças suficientes para lutar pelo ideal da liberdade. O ‘Eu’ distante, desconhecido e incerto, me empurrava à frente. Uma voz interior (como vinda de outra cabeça), à  semelhança de Edward Mordrake, gritava, a todo o momento, nos meus ouvidos: ‘Vai, cara, se desliga do cordão umbilical e segue a sua vida’. Estava saturado, farto, enfadado de ser febrilmente adulado pelos excessivos carinhos de mamãe.

Não aguentava mais ouvir os sermões infindáveis e longevos de papai, muito menos tolerar as suas críticas  enervantes e laxativas, ou ainda, por obediência, acatar as  idéias retardatárias e retrógradas de outros cansanguíneos, avaliações que  em nada condiziam com meu conceito primitivo de formação pessoal, notadamente  (com relação a tudo aquilo que me cercava). Achava, ainda, que desde tenra idade, um homem pra ser macho, de verdade, deve agir, por iniciativa de sua alta recreação, ainda que lá na frente, caia num precipício sem volta.

Nessa hora, vale tudo. Jamais ficar na dependência de outros seres pensantes iguais a meus pares, para dizer o que fazer, ou o que deixar de fazer. Eu deveria,  carecia por à prova de fogo, as iniciativas adormecidas no fundo da minha alma, e pô-las, em evidencia, sem intermediários, sem ninguém, por mais esperto que se julgasse,  metendo o bedelho e dizendo, faça assim, ou faça assado. Juntando tudo, e em face dessas e de outras infindáveis razões, decidi partir. Na verdade, a força do meu livre arbítrio recebendo a sua tão sonhada carta de euforia das mãos do meu destino.

Com a minha partida, renunciei  a tudo e a todos. Segui, desde então, pelas  mais diversas sendas e atalhos  que a vida colocou diante de mim. Enfrentei as incertezas de cada ponto desconhecido, o chegar  incerto e medonho de cada noite tenebrosa, bem como as melancolias  funestas e agourentas que vinham juntas, de roldão, e a cada novo amanhecer que se descortinava por sobre minha cabeça, me sinalizavam que eu seguia por uma via de mão única e logo chegaria ao fim. Mil vezes caí no abismo da derrota e mil vezes me levantei do fracasso.

Aprendi, entretanto,  todas as coisas sozinho, sem a ajuda de ninguém. Me tornei forte e opulento, vigoroso e  destemido. Me fiz galhardo e taludo, robusto e abjungido. Dissoluto e imune. Descobri o eixo, o núcleo, o âmago da vida, sem o apoio orientador de rostos amigos, de caras se abrindo em sorrisos de ajuda revestida de hipocrisia e fingimento, comédia e trampolinice. Igualmente  me libertei de  certos sentimentalismos baratos, de pieguices e derriços impertinentes que, na pratica, não me levariam a lugar algum. Sei, agora, me defrontar com o perigo, sem temer a morte, acaso cruze meu destino de uma hora para outra.

Me fiz homem. Construí muros intransponíveis ao redor de mim, muralhas para deter os presságios decadenciosos e mal vistos. Me auspiciei de amarras fortes e inquebrantáveis. Consegui tudo do que hoje desfruto, com o barro das terras distantes, com a argamassa da melhor qualidade por onde andei.  Me dei ao luxo de moldar os fracassos  enfrentados como o vaso nas mãos do  oleiro.  Venci. Me tornei campeão.  Nesta peleja muitos anos se passaram. Muitos mesmo. Nem saberia precisar quantos. Até que um dia, resolvi voltar...

Depois de não sei bem quantos janeiros, retroagi no tempo. Dei marcha à ré nos passos que deixei para trás. Voltei na poeira que ficou em minhas roupas, na saudade ímpar que se fez maior dentro do meu coração. Não trago no olhar de tantas visões, o sorriso dos momentos maus pelos quais passei. Nem alimento o coração com o peso das derrotas enfrentadas. Tampouco exibo à caridade das pessoas, às mãos feridas, os pés com as marcas dos calos conseguidos na busca diária  da sobrevivência.

Meu rosto, embora lívido e plumbeo, não estampa a cor ofuscante da amargura.  Ou as desgraças da  moribundez. Apenas regresso, e o faço porque o macerado da saudade dos que um dia deixei, nunca se foi embora definitivamente da minha alma. Retorno, pois, às origens, aos meus sustentáculos, aos meus pilares dos tempos de criança: entretanto, restauro   amadurecido,  me reembolso confiante, restituo mais ‘eu’. Bem sei, confesso, ficou pálida aquela tarde de domingo, quando parti de casa contradizendo todas as opiniões familiares...

Porém, entendo —, aquela tarde teria ficado mais pálida ainda —, quem sabe se tivesse tingido de um negro muito forte, caso deixasse a covardia hedionda derramar nos meus sonhos de moço, a determinação de não ter partido em busca de mim mesmo, em encalço da minha vida, em empenho acirrado das  quimeras  que eu acreditava. A minha  existência fora dos laços maternos, me fez confiante,  abusado, destemido,  tudo porque acreditava ser a  minha vontade a mais certa e a melhor. Talvez hoje (se eu não tivesse partido), chorasse  meus dias a serem vividos sobre o tempo perdido, ou sobre a pia do banheiro me olhando no espelho na hora de fazer a barba.

Talvez, ainda,  não fosse suficientemente maduro para encarar papai, meus irmãos, minha mãe, e por fim, meus filhos e esposa, dentro daquilo que julguei ser o certo. Meu verdadeiro eu, se sobrepôs aos meus anseios, se fez gigante em busca da liberdade, em busca de ser e me fazer um pouco mais feliz e realizado. Esse ‘eu’ distante e incerto que sempre esteve presente na minha vida, desde o instante derradeiro em que deixei  o ventre de minha mãe e o abrigo bucólico de papai.

Embora tenha  passado tantos anos,  e embora, ainda, tenha vivido intensamente cada minuto da minha vida louca, nunca me esqueci daquela enfermeira   não me recordo o nome,  que ao me trazer embrulhadinho para os braços de mamãe, naquele quarto da maternidade onde uma janela enorme se abria para um horizonte encantador disse a meus pais, sentados na cama: ‘o bebê de vocês é um homem’. E, realmente  provei a todos, principalmente a mim mesmo, que era homem, carimbado ‘macho pra burro’, na verdadeira acepção da palavra.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Avenida Paulista, Centro de São Paulo, Capital, 12-2-2021

Colunas anteriores: 
Presença 
Distorções de um cotidiano diário 
Acuado 
O fescenino do caráter ruim 
Invenção de espanto 
A vara de vimeiro 

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