Aparecido Raimundo de Souza
E segui
avante, não me lembrando de olhar para trás. Se o fizesse, sabia, encontraria
duas lágrimas turvando a visão materna naquele rosto brejeiro que, em
súplicas, implorava meu regresso. Apesar de tudo, ergui a cabeça, afastei as tristezas, sacudí os maus pensamentos e me pus à caminho. Num
repente, todo o mundo maravilhoso, que supunha ter em mãos, pareceu pesar
momentaneamente na minha decisão.
Agora, bem
sabia, se tornara demasiadamente tarde para regressar ao lar, àquele canto de
harmonia e paz, onde nunca faltara o amparo fraterno. Abriam-se, diante de mim,
como um leque, as portas daquele paraíso com o qual eu sonhava todas as noites,
na minha louca imaginação de adolescente desatinado e senhor de tudo. Enfim,
poderia realizar meus sonhos. E que sonhos eram esses?
Por
primeiro, me sentir independente e
autônomo. Por segundo, ser eu mesmo, me sentir senhor de mim e de meu nariz. Na
verdadeira acepção da palavra, comandante
dos meus proprios atos. A essência da juventude reside exatamente nessa
minúscula insignificância: ela, por si só, poder levar adiante seus anseios e
devaneios, sonhos e frustrações, sem encontrar a barreira do presente ditando
normas.
Dito de
maneira mais objetiva: ninguém pretende ter a vida inteira o dedo firme do pai
severo lhe apontando a direção a ser seguida. Tampouco a orientação madura da
mãe, mergulhada em prantos, cada um, a sua maneira, tentando mostrar o melhor
caminho a ser seguido. Isso é a família. De um modo geral, a família ela
representa o esteio sólido, o porto
seguro, a terra firme onde se deve pisar sem medo de enfrentar as intempéries
da vida futura.
O fato é que, naquela época, pouco estava me importando com essas baboseiras. Queria ir em frente. Caminhar sozinho, andar por estradas pisando os erros que viessem a ser cometidos e me livrar deles sem a ajuda de quem quer que fosse. Mostrar aos meus velhos e demais integrantes superados da família, que os tempos de outrora não se constituíam em motivos para celeumas e tantas e não sei quantas conversas fora de esquadro.
Queria, no
fundo, pretendia provar a meus pais que me tornara auto-suficiente, o
bastante, independente para enfrentar,
sozinho, os contratempos do velho mundo, bem como as incertezas do novos
horizontes que se abriam ao meu
deslumbramento, numa espécie de leque de mil tentáculos e estavam logo ali. Bastava passar do portão da casa onde vivera
desde que me conhecia por gente. Por
outro lado, intencionava meter na cabeça de cada um dos meus irmãos que há
muito deixara de ser um fraco e
opprimido menino de escola.
A bem da
verdade, a elevada confiança e a garra que depositava em mim, me davam forças
suficientes para lutar pelo ideal da liberdade. O ‘Eu’ distante, desconhecido e
incerto, me empurrava à frente. Uma voz interior (como vinda de outra cabeça),
à semelhança de Edward Mordrake,
gritava, a todo o momento, nos meus ouvidos: ‘Vai, cara, se desliga do cordão
umbilical e segue a sua vida’. Estava saturado, farto, enfadado de ser
febrilmente adulado pelos excessivos carinhos de mamãe.
Não
aguentava mais ouvir os sermões infindáveis e longevos de papai, muito menos
tolerar as suas críticas enervantes e
laxativas, ou ainda, por obediência, acatar as
idéias retardatárias e retrógradas de outros cansanguíneos, avaliações
que em nada condiziam com meu conceito
primitivo de formação pessoal, notadamente
(com relação a tudo aquilo que me cercava). Achava, ainda, que desde
tenra idade, um homem pra ser macho, de verdade, deve agir, por iniciativa de
sua alta recreação, ainda que lá na frente, caia num precipício sem volta.
Nessa
hora, vale tudo. Jamais ficar na dependência de outros seres pensantes iguais a
meus pares, para dizer o que fazer, ou o que deixar de fazer. Eu deveria, carecia por à prova de fogo, as iniciativas
adormecidas no fundo da minha alma, e pô-las, em evidencia, sem intermediários,
sem ninguém, por mais esperto que se julgasse,
metendo o bedelho e dizendo, faça assim, ou faça assado. Juntando tudo,
e em face dessas e de outras infindáveis razões, decidi partir. Na verdade, a
força do meu livre arbítrio recebendo a sua tão sonhada carta de euforia das
mãos do meu destino.
Com a
minha partida, renunciei a tudo e a
todos. Segui, desde então, pelas mais
diversas sendas e atalhos que a vida
colocou diante de mim. Enfrentei as incertezas de cada ponto desconhecido, o
chegar incerto e medonho de cada noite
tenebrosa, bem como as melancolias
funestas e agourentas que vinham juntas, de roldão, e a cada novo
amanhecer que se descortinava por sobre minha cabeça, me sinalizavam que eu
seguia por uma via de mão única e logo chegaria ao fim. Mil vezes caí no abismo
da derrota e mil vezes me levantei do fracasso.
Aprendi,
entretanto, todas as coisas sozinho, sem
a ajuda de ninguém. Me tornei forte e opulento, vigoroso e destemido. Me fiz galhardo e taludo, robusto
e abjungido. Dissoluto e imune. Descobri o eixo, o núcleo, o âmago da vida, sem
o apoio orientador de rostos amigos, de caras se abrindo em sorrisos de ajuda
revestida de hipocrisia e fingimento, comédia e trampolinice. Igualmente me libertei de certos sentimentalismos baratos, de pieguices
e derriços impertinentes que, na pratica, não me levariam a lugar algum. Sei,
agora, me defrontar com o perigo, sem temer a morte, acaso cruze meu destino de
uma hora para outra.
Me fiz
homem. Construí muros intransponíveis ao redor de mim, muralhas para deter os
presságios decadenciosos e mal vistos. Me auspiciei de amarras fortes e
inquebrantáveis. Consegui tudo do que hoje desfruto, com o barro das terras
distantes, com a argamassa da melhor qualidade por onde andei. Me dei ao luxo de moldar os fracassos enfrentados como o vaso nas mãos do oleiro.
Venci. Me tornei campeão. Nesta
peleja muitos anos se passaram. Muitos mesmo. Nem saberia precisar quantos. Até
que um dia, resolvi voltar...
Depois de
não sei bem quantos janeiros, retroagi no tempo. Dei marcha à ré nos passos que
deixei para trás. Voltei na poeira que ficou em minhas roupas, na saudade ímpar
que se fez maior dentro do meu coração. Não trago no olhar de tantas visões, o
sorriso dos momentos maus pelos quais passei. Nem alimento o coração com o peso
das derrotas enfrentadas. Tampouco exibo à caridade das pessoas, às mãos
feridas, os pés com as marcas dos calos conseguidos na busca diária da sobrevivência.
Meu rosto,
embora lívido e plumbeo, não estampa a cor ofuscante da amargura. Ou as desgraças da moribundez. Apenas regresso, e o faço porque
o macerado da saudade dos que um dia deixei, nunca se foi embora definitivamente
da minha alma. Retorno, pois, às origens, aos meus sustentáculos, aos meus
pilares dos tempos de criança: entretanto, restauro amadurecido,
me reembolso confiante, restituo mais ‘eu’. Bem sei, confesso, ficou
pálida aquela tarde de domingo, quando parti de casa contradizendo todas as
opiniões familiares...
Porém,
entendo —, aquela tarde teria ficado mais pálida ainda —, quem sabe se tivesse
tingido de um negro muito forte, caso deixasse a covardia hedionda derramar nos
meus sonhos de moço, a determinação de não ter partido em busca de mim mesmo,
em encalço da minha vida, em empenho acirrado das quimeras
que eu acreditava. A minha
existência fora dos laços maternos, me fez confiante, abusado, destemido, tudo porque acreditava ser a minha vontade a mais certa e a melhor. Talvez
hoje (se eu não tivesse partido), chorasse
meus dias a serem vividos sobre o tempo perdido, ou sobre a pia do
banheiro me olhando no espelho na hora de fazer a barba.
Talvez,
ainda, não fosse suficientemente maduro
para encarar papai, meus irmãos, minha mãe, e por fim, meus filhos e esposa,
dentro daquilo que julguei ser o certo. Meu verdadeiro eu, se sobrepôs aos meus
anseios, se fez gigante em busca da liberdade, em busca de ser e me fazer um
pouco mais feliz e realizado. Esse ‘eu’ distante e incerto que sempre esteve
presente na minha vida, desde o instante derradeiro em que deixei o ventre de minha mãe e o abrigo bucólico de
papai.
Embora
tenha passado tantos anos, e embora, ainda, tenha vivido intensamente
cada minuto da minha vida louca, nunca me esqueci daquela enfermeira não me recordo o nome, que ao me trazer embrulhadinho para os braços
de mamãe, naquele quarto da maternidade onde uma janela enorme se abria para um
horizonte encantador disse a meus pais, sentados na cama: ‘o bebê de vocês é um
homem’. E, realmente provei a todos,
principalmente a mim mesmo, que era homem, carimbado ‘macho pra burro’, na
verdadeira acepção da palavra.
Título e
Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Avenida Paulista, Centro de São Paulo, Capital, 12-2-2021
Colunas anteriores:
Presença
Distorções de um cotidiano diário
Acuado
O fescenino do caráter ruim
Invenção de espanto
A vara de vimeiro
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