sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Distorções de um cotidiano diário

Aparecido Raimundo de Souza

O SUJEITO TOMADO pelos vapores do álcool, quase a ponto de cair de maduro, entrou no ônibus com dificuldade e, com muito custo pagou a passagem. Assim que cruzou a roleta, deu uma parada básica e espiou, como um sentinela sem guarita, para um ponto acima da cabeça dos passageiros que estavam sentados. Avistou, então, depois do reservado aos deficientes, um lugar vazio, ao lado de uma moça de cabelos vermelhos que se entretinha com seu aparelho celular, naturalmente jogando alguma coisa para se distrair até que chegasse seu ponto de destino.

Um flash de luz se acendeu dentro de sua irresponsabilidade travessa. Lento e cambaleando em tropeços deselegantes de seus próprios impasses, segurando aqui e ali, o aventureiro conseguiu chegar até ela. Pediu licença e se instalou, ou melhor, se jogou com tudo, se estabanando pesado, como um Mané, completamente destituído dos modos elegantes de um cavalheiro que se preza e sabe se portar de maneira educada ao lado de uma garota distinta. A jovem, com o seu baque, o mediu de cima em baixo, com um par de olhos verdes e, em seguida, se achegou mais contra o canto da janela e voltou a se preocupar com a tela de seu celular: 
— ‘Disculpi, foi maul...’ — Grunhiu à guisa de explicação:
— Tudo bem, esqueça.

Junto com estas palavras, a beldade lhe endereçou um sorriso sem graça, mais por educação que por simpatia e continuou firme, voltada com os sentidos atentos para o que fazia, sem dar mais confiança ao insolente. A certa altura, todavia, o pinguço, sem o abrigo da sobriedade, puxou conversa:
— ‘Comu é seo nomi?’
— Monica.

— ‘O que está jogano?’
— Paciência.
— ‘É boum o passatempu?’
— Dá pra enganar o tédio das horas.
— ‘Faiz tempu qui si dedica ao gostu apuradu por porcarias?’.
— Não acho que seja... É bem legal...

Percebendo que a formosa lhe ignorava dando o maior gelo, não lhe aberturando brechas, tampouco sustentando a conversa, respondendo apenas com duas ou três palavras, partiu para o ataque:
— ‘Possu lhe fazê otra pregunta?’
— Sem problema...

— ‘Nãum vai mi levá à mal?’
— Por que chegaria a tal disparate? Meus pais me ensinaram a ser educada...
—‘Legaul. Vamu lá. Seguinti... A senhorita é meia esquisita e feia assim mermo, ou é meus olho que está me enganano?’.
A interpelada corou vigorosamente por trás da sua graciosidade. Todavia, não perdeu a linha, nem a compostura.
Encarou, com toda a seriedade que lhe foi possível juntar naquele momento e se dirigiu, fulminante, para o engraçadinho mandando a resposta, na lata:
— Pior é o senhor. Olhe para isto! Um traste. Além de bêbado e chato, fedendo a carniça e me causando asco. O cheiro da sua pinga nojenta e barata me dá vontade vomitar...
Fez uma breve pausa como para tomar fôlego e prosseguiu, altiva:
—... Sem falar nas suas roupas, que exalam alguma coisa tipo assim azeda, ou podre, sei lá. Amigo, vê se te enxerga e me deixa em paz.

O alcoólatra, no afã da sua insubordinação, e extremamente alterado e fora de si, pelo mutismo da sua companheira de assento, não deixou por menos. Rebateu, à alta voz, num script sem ensaio, chamando a atenção de outros anônimos sentados próximos:
— ‘Minha quirida, olhe beim pra meus cornu e se lembri de uma coisa. ‘Daqui a poco, ou mais tardá amanhã, eu estarei novo em folha e curado. Sem chero algum... Já a senhorita, continuará tão lambisgoia e marmota como agora’.
Visivelmente irritada, a bela representante do sexo oposto, se conteve. Ato contínuo, pediu licença, se levantou, puxou a campainha do sinal e desceu. O engraçadinho continuou no mesmo lugar, cantando e rindo alto e falando palavrões a mais não poder, como se nada de anormal tivesse acontecido.

Resolveu, porém, na sua estupidez insensata, sair novamente da gaiola de seus excessos e voar mexendo com outra recém chegada, desta feita, uma estudante aparentemente na faixa dos quinze anos, que entrou um quilômetro, ou dois, adiante. Carregava, consigo, uma mochila pesada e se esparramou ofegante no banco à frente do perturbado. O sem modos, não demorou para colocar as unhas de fora. Passou as mãos nos cabelos longos e encaracolados da guria.

Deu BO. Três sujeitos que viajavam em pé, nos degraus da porta de saída dos fundos, resolveram interferir. Compraram a briga. Partiram literalmente para cima do bebum, com tudo. Pegaram o insolente de porradas. Distribuíram certeiros tabefes, seguidos de uma dúzia de pernadas e outros tantos de safanões e bordoadas. Logo depois das carícias, numa das paradas, atiraram o biriteiro como um saco vazio, para fora do coletivo, a fuça deformada, as roupas em pandarecos.

Seus costados e dissabores se desfizeram esparramados numa poça de sangue e sujeira. Daí para frente, o ‘quarenta janelinhas’ seguiu a sua viagem normal, pegando um aqui, desembarcando outro ali. Quem assistiu a cena e seguiu até o final da linha não se se meteu nem contra, nem a favor do mala sem alça e seus espalhafatos, por conta, caíram no esquecimento.

Manhã seguinte, saiu no jornal, primeira página, em letras garrafais: "FUZUÊ NA VOLTA PRA CASA". A notícia, dava destaque ao fato, informando que... ‘Um pobre e infeliz trabalhador, se viu molestado e roubado dentro de um transporte público. Seus agressores, não contentes em lhe subtraírem todos os pertences, ainda lhe aplicaram uma tremenda surra e —, na sequência —, lhe jogaram para fora da condução. A vítima foi encaminhada para o hospital por populares que passavam pelo local e acionaram o SAMU. Uma viatura da Polícia Militar seguiu na captura dos meliantes. Ninguém foi preso’".

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Pompeia, interior de São Paulo, 5-2-2021

Colunas anteriores: 
Acuado 
O fescenino do caráter ruim 
Invenção de espanto 
A vara de vimeiro 
Retrato de um crápula 

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