sexta-feira, 7 de maio de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Empenho de restauro

Aparecido Raimundo de Souza 

O PROFESSOR DE PORTUGUÊS, se chamava Timóteo. O de Matemática, Sebastião. De Educação física, Elisabeth e, o de literatura, Eurídice. De Ciências, Zilda, de História, Pompeu e, de ingles, Loiola. Com este, em particular, um grupinho de moças e rapazes, caia em cima, de pau, sem dó nem piedade. A miudada sacaneava com ele até dizer chega. Por esta razão, os desordeiros, o apelidaram de ‘boiola’ —, não que o cara tivesse saído do armário, sequer entrara nele. 

A alcunha surgiu em decorrência unicamente do seu patronímico de nascença ser propício a este tipo de brincadeira, por sinal, de muito mau gosto. Para o Loiola, não existiam meios termos. A maldita desdita do apelido, podia aflorar de um simples bate-papo (ou em meio de uma reunião dos agregados pelas dependências da escola), que não tivesse outra coisa mais séria a fazer, senão a de obumbrar a imagem de um cara sério que levava a sua vida de maneira digna e honesta a não deixar dúvidas. 

Uma vez na escola, os ‘engraçadinhos’ aproveitavam os horários vagos para tirarem sarro ou espalharem, entre seus pares, uma nova piada sem graça em chacota ao mestre do ingles. Bastavam ver o infeliz passando, ou entrando nas salas de aula, lá vinha um filho da mãe com uma gozação escondida na manga.
— Viu o boiolão passando ali?
— Sim. Deve estar indo para o banheiro...
E um terceiro, arrematava:
— Das meninas ou dos meninos?
— Só a gente indo conferir de perto... — obtemperou outro.
— Vamos ‘nessa?’.

Na sala dos professores, Loiola conversava abertamente com todos, único lugar em que se via e se sentia respeitado e ninguém do corpo docente, o incomodava com conversinhas ou gracejos que pudessem, ainda que de longe, melindrar a sua honra. Loiola, quando tinha horário vago, consumia seu tempo ocioso trocando altos papos com a diretora geral, a encantadora professora Sofia.

Aqueles que não alimentavam e não participavam das brincadeiras depreciativas e menoscabadas, procuravam o professor para tirarem as dúvidas relacionadas à sua matéria. E ele, sempre gentil e senhor de si, atendia a moçada, mostrando o seu melhor sorriso e a atenção que somente um craque dispensaria a seus alunos. Entretanto, a turma galhofeira e chalaceadora que o via com olhos ferozes, sempre dava um jeitinho de colocar o professor Loiola na berlinda.
— Temos notícias do professor Boiola?
— Acabei de ver o ‘escondedor de quibe’, não tem dois minutos, fazendo um lanche, na cantina...

Os desprovidos do senso ético, engambelados nas malhas do ridículo, os palhaços de plantão que se igualavam aos promotores de todo tipo de desordem e chacotas, sempre encontravam algum imbecil disposto a entrar para a agregação e macular e conspurcar o distinto mestre (que, acima de tudo, se fazia demasiadamente querido e amado, tanto pelos colegas, como pela diretoria, ai incluindo os empregados, do porteiro ao mais alto do corpo docente). Afora a sua inteligência e sabedoria acima de qualquer suspeita. Loiola tinha um currículo exemplar, com anos e anos dedicados ao magistério, observando que, em outra esfera e horário, ministrava aulas de língua inglesa em outra faculdade renomada, onde, igualmente, todos o admiravam e respeitavam.

Entretanto, naquele estabelecimento de ensino, especificamente, por alguma razão inexplicável, meia dúzia de delinquentes não lhe dava folga, nem trégua. Entrava dia e saia, cada vez mais alunos teimavam em se unirem para jogarem seu nome no escárnio. O professor Loiola sabia destes ataques, mas levava e tirava numa boa, ou seja, não dava tratos à bolas. Seguia à vida normal, como se nada de desagradável girasse em torno de sua vida pessoal. Num destes ataques, um aluno (o cabeça de uma patotinha que vivia aprontando), ao encontrar a sua turminha de safados e intransigentes, inquiriu de outro mais tresloucado que ele.
— Acaso um de vocês topou com o boiolão dando sopa por ai?
— Acabou de entrar na sala de TV e vídeo. Vai ver foi procurar alguém ‘pra logo mais a noite...’.

Resolveram, por unanimidade, que naquele dia, uma bela e calma tarde sexta-feira, chegara a hora e o momento de espionarem o infeliz do Loiola e desmascara-lo publicamente. Seguiu, com esta objetivação determinada, uma turma considerável de filhinhos de papai, de ambos os sexos, para a tal sala de TV e vídeo, como um bando de chacais a rodear carne fresca. O intervalo havia acabado, fazia bem uns cinco minutos. Antes de abrirem a porta, prepararam lanternas e celulares, para filmarem as possíveis cenas de orgia do professor Loiola, talvez com algum aluno, ou até mesmo nos braços de outro professor.

A ideia central da tropa se constituia em descobrir e atonar, detonando, mandando para o espaço, qual o outro desconhecido que virava os olhinhos triturando, no entender deles, ‘o esqueleto do insigne educador’. Ao abrirem a porta, encontraram tudo às escuras. Era de se esperar. À medida que a turba avançava, sentiu, de pronto, uma mudança bastante significativa na atmosfera. Os integrantes passaram a ouvir gritos e gemidos abafados vindos de trás de uns armários enormes —, uns móveis desusados que ficavam esquecidos num canto ermo, perto do palco enorme onde professores exibiam —, ora filmes os mais diversos —, ora ensaiavam peças teatrais.

Neste lado meio que escondido, podiam ser vistas quase uma centena de cadeiras, como se fosse um pequeno auditório de cinema. Ao acenderem as lanternas e as luzes dos celulares, a revelação abrupta e inacreditável do panorama que se fez real, seguido do espanto inesperado. De roldão, o assombramento daquele momento único que estuporou como uma cortina sendo descerrada aos olhos de todos. O professor Loiola estava despido das roupas, seus pensamentos completamente desnudados de todos os pudores; agarrado; todavia; a um outro corpo; este escultural: o da linda e esfuziante professora Sofia, diretora geral da escola e esposa do professor Timóteo, da cadeira de Português, com quem se casara coisa de dois meses. No exato momento do flagra, ela igualmente pelada, se debatia, envolta em palavras ininteligíveis, cansada e exausta, debaixada como uma gatinha manhosa que passara o dia caçando ratos.

Abismados, os engraçadinhos, vinculados como possíveis cabeças candidatadas a serem cortadas com a esfrega e o corretivo da expulsão, deram meia volta e saíram dali quietos e respeitosos, rabinhos entre as pernas, avexados e envergonhados. Apesar da ambiência pouco aclarada, a diretora Sofia, esperta e vivaz, capturou um rostinho esbugalhado sob a pesada maquiagem do assustadíssimo aluno que pastorava a funçanata. Desde então, o hiato dos joguinhos sujos que insistia em ligar o professor Loiola aos flibusteiros que atanazavam as vias de envergonhá-lo publicamente, foi sumariamente tapado e deixado de lado.

O melhor de toda a história, lhe deram tranquilidade e quietação ao espírito. Nunca mais a banda pobre da escola (que fomentava balburdias e confusões com a sua pessoa), ousou lhe chamar de boiola. Literalmente os noiados (cada um por sua vez), trataram de se achegarem, aos poucos do professor de ingles e manterem uma boa política de vizinhança com ele e, com a diretora Sofia. Com esta, principalmente. Por derradeiro, os personagens envolvidos e chamados, a depois, para uma conversinha particular na sala da gestora geral da diretoria, preferiram seguir com suas vidinhas pacatas engolindo seus infortúnios e frustrações pelas sendas da boa convivência. O mais importante: cada um, a partir de então, se manteve escudado nas garras do anonimato.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Sítio Shangri-La - ES/MG, 7-5-2021

Colunas anteriores: 
Tal como os Cátaros de Albi 
Deu branco 
Rotina insana
Fogo pelos cotovelos 
A parte da história que forma o defunto 
CPI – Com abelhas ou sem, um ‘Mel’ necessário 
Paternidade garantida 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-