terça-feira, 4 de maio de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Tal como os Cátaros de Albi

Aparecido Raimundo de Souza

NO EXAME FINAL DO CATECISMO, para a Primeira Comunhão, o velho padre Ramaphosa chamou seus meninos à discorrerem sobre os ensinamentos trazidos à baila, notadamente do sinal da cruz, antes de se recolherem aos afagos do descanso de seus quartos. O pároco, mês inteiro, batera muito nesta tecla da obrigatoriedade de elevar os pensamentos aos céus, em agradecimento e, logo em seguida, feita uma pequena prece, se benzer conforme os exaustivos conselhos reiterados no final de cada encontro.
— Vamos começar com você, Luiz Alberto. Qual é mesmo a última coisa que faz antes de ir se deitar?
— Peço a bênção aos meus pais.
— Só isto, Luiz Alberto? Nada mais?
— Só isto, seu padre.

Passou ao menino seguinte: 
— E você, Carlinhos? 
— Dou boa noite à mamãe. 
— E a seu pai não? 
— Meu pai mora com outra mulher. 
O prelado, sem graça, desconversou:
— Não sabia Carlinhos. Me desculpe. E você, Catarino?
— Ah, seu vigário, eu beijo o Toninho na boca. 
O santo homem arregalou os olhos, assustadíssimo: 
— Cristo Salvador, a que ponto chegamos! Tenha piedade desta alma. E seus pais não falam nada? Não lhe ensinaram que este gesto é pecado e contra os princípios das leis divinas?

— Ué! Desde quando beijar o meu cachorro é todo este absurdo que o senhor falou? 
— Espera ai, Catarino. O Toninho é um cachorro? 
— Sim, seu reverendo. Quem o senhor pensou que fosse? 
— Retiro o que disse, Catarino. 
O guri insistiu e esclareceu um pouco mais a história.
— Ganhei o Toninho da mamãe, no dia do meu aniversário. 
O ministro de Senhor sorriu meio desajeitado com o rumo que a conversa havia tomado. Tratou logo de mudar de assunto. Fingindo um certo constrangimento pelas crianças, em face das coisas do Pai Maior não serem lembradas, como ensinara, apesar deste desgosto, seguiu em frente: 
— Barnabé, qual a última coisa que você faz antes de se recolher? 
— Dou uma surra em meu avô Barbozinha.
O da batina fuzilou o infante em vista do que ele acabara de confessar:
— Surra? 
— Sim, seu padre. Surra. 
— Meu filho, quantos anos tem seu avô? 
— Oitenta e cinco...

O prior foi mais além. Boquiabertou, estupefatado. Deu um tremendo salto de seu assento, um pulo tão barulhento da cadeira onde se achava sentado, que São Jorge, ao lado, numa espécie de andor imenso, quase despencou do lombo do cavalo se espatifando em cima do dragão que soltava fogo pelas ventas.
Estava, o presbítero, realmente deveras furioso:
— E você tem coragem de dar uma surra em seu avô? Sabia que este procedimento é feio, digo mais abominável que tudo aos olhos do Altíssimo? Onde já se viu dar uma surra no avô? Seus pais não reclamam com você, não falam nada, não lhe põe de castigo nem lhe chamam nos eixos? 
— Que nada! Eu e vovô jogamos buraco, outras vezes Pif-Paf... Vovô gosta de roubar no jogo. Agora que eu descobri que ele esconde as cartas de baralho nas mangas da camisa, eu passei a lhe dar uma surra. Não deixo que ele ganhe. O vô fica é muito fula da vida...
— Ah, bem! — Eu pensei — falou o religioso mais calmo e passando um lenço na testa. — Eu imaginei que você descesse o braço no seu avô. Me perdoe. Vamos à frente. E você, Augustinho?

— O que tem eu, seu pontífice? 
— Qual a última coisa que faz antes de dormir? Sugiro, ao dar a sua resposta, refletir no desfecho de nossos encontros aqui na igreja antes de todos voltarem para suas casas. 
— Eu espero toda a galera se recolher. Ai eu me esgueiro sorrateiramente até a cozinha e assalto a geladeira da mamãe. Tomo todo o suco que ela deixa numa jarra e devoro os pães de queijo que ficam guardados no forno para quando meu pai chegar do trabalho... 
— Que coisa feia, Augustinho. Jesus não gosta que seus pequenos ajam desta forma. Precisamos pensar em nossos semelhantes. 
— Mas eu penso, seu padre. 
— Como assim? Se você bebe todo o suco da jarra e come os pães de queijo que a sua mãe deixou reservado no forno? 
— Quando eu disse ao senhor que me esgueiro até a cozinha, papai já chegou e nós dois fazemos um lanche. É o único momento que eu tenho com ele, tardão da noite, uma vez que ele trabalha o dia inteiro e, uma parte da noite e, quase não o vejo em casa. Este momento, seu padre é só nosso...

Finalmente chegou o instante do santo clérigo dar voz ao remanescente dos pirralhos. Talvez este se lembrasse das ensinanças que o representante do Altíssimo, durante todos os encontros, tratou de colocar na cabeça de cada um. ‘Lembrem, antes de dormir, fazer uma pequena prece e renovar o sinal da cruz’. 
— Helinho, meu jovem, chegou a sua vez. Diga para nós, o que você faz antes de ir para a cama? 
E o Helinho, com um rostinho resplandecendo a formosura dos seus oito anos, sem pestanejar, mandou vê: 
— Eu vou ao banheiro e faço cocô. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Sítio Shangri-La - ES/MG, 4-5-2021 

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