Aparecido Raimundo de Souza
Jamaicagás é “defensor”. Ou
melhor dito, era. Labutava o dia inteiro, de sol a sol, num Uber carregando
passageiros para baixo e para cima. O problema é que bateram nele, num
cruzamento em Brás de Pina. O carro ficou em petição de miséria. Não morreu,
por milagre. Por essa razão, não pode sair para trabalhar. Essa parada forçada
em seu cotidiano perdurará por uns três à quatro meses, ou talvez mais. O dono
do veículo, um italiano chato pra cachorro, resolveu grudar no pé, sem procurar
saber de quem foi à culpa pelo acidente. Ele quer o carro circulando, sem se
importar com quem arcará com face os prejuízos. Enquanto a oficina de um amigo
em Caxias cuida de remendar os estragos, no famoso "0800", Jamaicagás
sai à cata de alguma coisa que lhe renda, pelo menos, a média com pão e
manteiga e a saída definitiva de viver à crédito da mãe doente e em idade
avançada.
Procura daqui, caça dali, se
vira acolá, faz um bico em Parada de Lucas, mete uma placa nas costas na Penha
Circular com os dizeres em garrafais “Compro ouro, pago bem e a vista”.
Finalmente conseguiu um “bico”. Um emprego relâmpago, tipo quebra galho, desses
que só entram em cena nos finais de semana. Porteiro de inferninho. Exatamente.
Vigia de furdunço. Nada a ver com segurança. Aliás, para segurança, Jamaicagás
não serve. Além de nanico e desengonçado, quase cinquenta no lombo, salta aos
olhos, uma barriga de fazer inveja ao Ronaldinho Fenômeno. Saco de areia, ou
pedra. Grosso modo, obstáculo de porta. É isso! Jamaicagás, agora, é empecilho,
dique, guardião de ingresso de um prostíbulo famoso na Barra de Guaratiba.
Para levar à termo o ofício, colocaram nele uma roupa larga de palhaço, nariz preto de bufão maior que o de Pinóquio, e lhe pintaram as bochechas com tinta vermelha. De pano ruim não se faz bom saco. Em face disso, trabalha todos os sábados e domingos de seis da noite às seis da manhã. Seu serviço consiste em não deixar o acesso ao salão principal da boate bater ao se fechar inopinadamente. O choque produz um barulho infernal. Devido o vento forte, ao menor descuido, a infeliz explode ribombando como trovão. Parece, na verdade, uma bomba. Para quem está no bar dançante, ou enfiado nos quartos, tem a impressão de que um tiro foi disparado por uma arma de grosso calibre. Isso, no dizer do gerente da pocilga, assusta, amedronta e espanta a freguesia.
Tira a tesão e a galhardia da
galera. O que provoca esse desconforto ao ambiente, sem dúvida, a localização
do covil. A construção de dois pavimentos fica incrustada num terreno
descampado, sem muros, sem proteção, de frente para o mar. Daí o sopro da
aragem incontrolável castigar impiedosamente aquele reduto. Fronteiriço à
suntuosa boate, há uma rodovia cujo fluxo de veículos é intenso. Na parte
externa, dois seguranças vigiam quem pretende ser admitido. Ninguém acessa o
recinto antes dos brutamontes vasculharem da raiz dos cabelos aos fundilhos das
cuecas. A ideia é evitar brigas e confrontos entre as meninas – a maioria
filhas de pais ricos, estudantes, universitárias e modelos de primeira linha,
enfim, capas de revistas – para barbado nenhum ver e botar defeito.
Só depois de uma meticulosa
conferência, os guarda-roupas embutidos autorizam o sujeito a adentrar para
desfrutar os prazeres que as belas e fogosas representantes do sexo oferecem. É
nessa hora que os préstimos de Jamaicagás são indispensáveis. Com um sorriso de
Carequinha bailando largo de canto a canto da boca, o miúdo arreganha o umbral
ao máximo, dando os cumprimentos de boas-vindas ao cliente, sem se importar que
tivera ocasião de ver coisas do arco da velha, suspeitar de muitas outras, se
passando, evidentemente, pelo bom samaritano, ou seja, fingindo não perceber
nada daquilo que lhe queriam ocultar. Fora isso, apesar de ficar plantado o
tempo todo, e só deixar o posto por cinco minutos, ora para ir ao banheiro
fazer as necessidades fisiológicas, ora para engolir a gororoba que o patrão
serve às duas da manhã.
Nessa vida dura de Patati
& sem Patatá, Jamaicagás encontrou algumas compensações. Uma delas, com
certeza, a esfuziante Liliane “Lombinho Doce”, uma garota de programa vinte
anos mais nova, uma pérola nacarada, uma teteia que veio se achegando à miúdos
passos e se engraçou dele e de suas privanças. E nesse devagar cauteloso,
firmou âncora na certeza da correspondência. A pouco, e depois mais, começam a
sair juntos, a se encontrarem às escondidas, sem que os colegas da noite à
noite, desconfiassem. Se o caminho está traçado, não adianta pegar desvio.
Meses depois, o casal de pombinhos assumiu o romance publicamente e resolveu
morar juntos, ou seja, Liliane (que não precisava vender o corpo, se virava
como meretriz para ter uma grana extra), fez o convite, e, de repente,
Jamaicagás saiu de Brás de Pina e optou dividir cozinha e banheiro, quarto e
cama, com a nova companheira, lá para as bandas de Bonsucesso, ao lado da
estação.
Aos poucos, gradativamente, o
rapaz se esqueceu da Genoveva ingrata que o abandonou na rua da amargura indo
embora levando um recém-nascido que ele sequer teve a certeza se nascera fruto
das trepadas com as “deitanças” da espertalhona, ou de suas lavagens de roupas
fora da alcova familiar. Em dias de agora, o sortudo ameniza a dor e a vergonha
pela filha Simone que embarrigou de um sujeito de índole perversa. Literalmente
refez a vida desmoronada. Nem não culpa o italiano proprietário do Uber, que
mandou à merda, de barquinho, e vestiu, de vez, a camisa da casa noturna.
Aliás, Jamaicagás, foi promovido. Passou a trabalhar de segunda a domingo,
carteira assinada, os cambaus. A maior recompensa, entretanto, anda a um fio de
se concretizar. Virar realidade. Liliane, a sua exuberante “Lombinho Doce” está
prenha de oito meses. De Gêmeas.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo. 17-5-2022
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Tábula velha
Por quem os sinos nunca deixaram de dobrar?!
De repente tudo se fez visível quanto uma nódoa escura em xícara de fundo branco
O "Encosto"
Esfera em plano inclinado
Belo texto. Sem rebusques, linguajar simples, objetivo, claro e conciso. Aparecido descreve o cotidiano de um Mané com a perspicácia de um sujeito que, do nada, no caso do Jamaicagás, alcançou seu tudo e se refez das intempéries da vida ingrata. Mostra, com objetividade, a força interior, a magia poética de um cara que tinha tudo para ser infeliz, se maldizer, se lamentar, se deixar ser levado pelas desgraças do dia a dia. O sucesso o recompensa grandemente, desde a família desfeita, do filho perdido ao nascimento de duas novas criaturinhas ao lado do seu amor 'Liliane, a Lombinho Doce'. que abrirá novas portas em sua vida de contratempos e dissabores. Nos ensina que, mesmo nas circunstâncias mais degradantes, nunca, em tempo algum, devemos perder a Esperança. A Esperança não é a última coisa que deve morrer, aliás, nem deve deixar que a sua presença fuja pelo ralo. Ela, a Esperança, acima de qualquer obstáculo, carece ser o fio condutor que nos levará aos píncaros de um amanhã melhor e mais colorido. Tudo na observação maviosa dos olhos graciosos de Deus.
ResponderExcluirCarina Bratt
Ca
em Vila Velha ES.