terça-feira, 2 de agosto de 2022

[Aparecido rasga o verbo] A vizinha de frente

Aparecido Raimundo de Souza


ELA PRECISA
de uma xícara de açúcar para adoçar o café. Espia cuidadosamente escudada por entre a cobertura da cortina da sala para não ser vista inteiramente como está composta. Quase nua. O desconhecido se faz em casa. Já o viu duas vezes passeando de um lado para outro em seu dormitório, sem camisa. Pensa, repensa, por fim decide. Joga por sobre a lingerie azul um robe discreto, caminha até a porta do rapaz e toca a campainha. Ele abre em segundos:
— Bom dia.
— Bom ia. Em que posso ajuda-la?
— Sou a Zuleica, moradora aqui de frente. O meu apê é aquele ali, o 501...
— Prazer. Sou o Camaleão, seu vizinho dos fundos. Não quer entrar?

Zuleica titubeia antes de decidir se cruza ou não o umbral da porta com as boas vindas que lhe é estendida. Numa rápida espiadela, varre o ambiente, medrosa de haver outra pessoa além daquele sujeito alto e magro, de corpo sarado, peito bem torneado, acasalado da cintura para baixo em uma jeans preta elegante, a barriga tanquinho, encimada por uma SHEIN branca-lisa, com gola, toda amassada, colocada evidentemente às pressas. Para a concepção feminina dela, no geral, um gato...
— Não se preocupe. Estou fazendo companhia a mim mesmo.
— Sua esposa?
— Ainda não encontrei a metade faltosa da tão procurada maçã.
Zuleica aceita o convite e espera que Camaleão feche a porta atrás de si:
— Não passei a chave, se isso a deixa mais à vontade. Qualquer coisa é só pular pela janela e correr com seus receios...
Riem da piada como se fossem velhos conhecidos:

— Então, Zuleica, como posso lhe ajudar? Estou vendo que está com uma xícara?
Precisa Camaleão repetir a pergunta:
— Como disse?
— Em que posso ajudar tão simpática senhorita? Vejo que se faz acompanhada de uma xícara!...
— Necessitava, quero dizer —, careço ainda de um pouquinho de açúcar. Eu...
Antes que ela complete o que pretende dizer, ele se adianta, com uma gracinha boba:
— Deu para perceber. A sua vida está amarga? Eu tenho a solução...

Zuleica se desfaz brejeira e convidativa à tal observação carinhosa:
— O meu café esqueceu de roubar o açucareiro da padaria...
— Por falar em café, preparava o meu. Quer me dar a honra? Será bem-vinda.
— Se não for incomodo...
— Que isso! Terei imenso prazer. Venha comigo.

Camaleão pega Zuleica pela mão e a conduz até a pequena cozinha. Os lofts de ambos seguem o mesmo tamanho e formato. O que muda se constitui unicamente na posição do traçado das plantas. A frente da sala dela dá para os fundos do quarto dele. Separam ambas as peças, um fosso entre as janelas, o que permite um perscrutar o cafofo do outro, sem muito esforço:
— Tenho pão, queijo, mortadela, leite e Toddy. Qual vai ser a sua pedida?
— A mesma que a sua.
— Você não sabe qual é a minha!...
— Acho que descobriremos agora.

Camaleão se adianta ligeiro e prepara, no micro-ondas dois copos de café com leite. Retira de numa cestinha em formato de coração alguns pães, passa manteiga e acrescenta queijo e mortadela. Oferece um à sua mais nova companheira:
— Sente-se e coma. Se quiser repetir, não faça cerimônia. Sinta-se em casa.
Se acomodam um ao lado do outro:
— Se quiser mais açúcar é só esticar o braço. Está no potinho verde às suas costas.
— Obrigada.

Terminam o breakfast. Camaleão se põem em pé, coloca os talheres e as louças usadas na pequena pia. Zuleica o imita, em silêncio. Enquanto o rapaz guarda o que tirara da geladeira, ela se oferece a lavar o que haviam usado:
— Não, por favor. Deixa tudo aí. Depois eu arrumo a bagunça. Vou pegar o açúcar para adoçar o seu dia que tenho certeza, será maravilhoso.
— Camaleão, eu só queria lhe retribuir a gentileza...
— Não fiz nenhuma. Só lhe convidei para me acompanhar no café. Enquanto fala, Camaleão enche a xícara trazida pela jovem:
— Aqui está. Se quiser mais... é só dar um “olá” para a minha discreta campainha...

Zuleica se desmancha num gracejo estonteantemente infantil:
— Camaleão, você foi além das expectativas, quero dizer, do esperado... para lhe falar a verdade, à tarde, quando voltar do trabalho, não me esquecerei do supermercado. Faço questão de devolver o empréstimo...
Sem ligar para o que Zuleica diz, ele insiste em saber mais a respeito da vida pessoal da exuberante pucela:
— Você é casada?
— Não.
— Solteira? Tem namorado?
— Eu...
— Não minta... é feio. Tem dono o seu coração?
No que ia responder, alguém toca a sineta. Camaleão acorre à sala. Escancara o ádito.

No corredor, uma outra deliciosa de uns dezoito anos, linda e magnificamente charmosa se abre em gestos brejeiros. O rosto dela lembra uma deusa lúdica moldada à beleza ímpar e perfeita de Afrodite:
— Pois não?
— Bom dia. Sou a Irene... por acaso a...
O rapaz interrompe a beldade de dizer o que pretende e emenda uma de suas piadinhas:
— Olá, bom dia Irene... se continuar assim, a minha porta vai sair daqui e se mudar com todas as chaves e trancas para o 501...

Por cima do ombro de Camaleão surge o rosto de Zuleica, ligeiramente pálido e apavorado. A sua tremura é perceptível. Sem dar trela à piadinha que Camaleão acaba de jogar para a nova donzela, toma fôlego e se adianta:
— Oi, Irene. Este aqui é o Camaleão. Antes de te acordar, vim perturbar nosso vizinho pedindo uma xícara de açúcar... veja, já ia levar e preparar o seu dejejum...
Completamente sem graça, a princesa após as apresentações, se enlaça à recém-chegada pela cintura e a beija nos lábios entreabertos:
— Camaleão, meu amigo, esta é minha namorada. Obrigado pelo café e pelo açúcar. Foi um prazer. Desculpe o incômodo.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 2-8-2022

Anteriores: 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-