sexta-feira, 7 de outubro de 2022

A proteção à vida em 2023

O Brasil não aguenta mais dois Barrosos, dois Alexandres ou dois Fachins — indicados por um corrupto que estava preso e que foi solto exatamente por uma manobra ativista da Corte

Ana Paula Henkel

Foto: Pedro Kirilos/Estadão Conteúdo

Há enormes diferenças entre a política norte-americana e a brasileira, desde o próprio colégio eleitoral até o cenário que envolve partidos; no Brasil são dezenas deles, e nos EUA apenas os dois maiores importam e ditam os caminhos políticos. No entanto, há muito que podemos aprender com algumas lições que a política norte-americana oferece. Uma delas é o pragmatismo de muitos eleitores e como a paixão por políticos — mas sim por políticas! — dificilmente rege a tomada de decisões na urna.

A eleição presidencial norte-americana de 2016 traz um ponto de reflexão para os brasileiros que não votaram em nenhum candidato no primeiro turno no último domingo. Talvez seja hora de pensarmos como muitos norte-americanos pensaram na época daquela também polarizada corrida eleitoral. Na histórica eleição que deu a vitória a Donald Trump, os eleitores rejeitavam ambos os candidatos, e o pleito de 2016 ficou marcado como “uma eleição entre dois candidatos ruins”. E foi ali que muitos — muitos — republicanos mostraram o que é chamado aqui nos EUA de “single issue voter”, ou “eleitor de questão única”. 

Foto: Shealah Craighead/White House

Alguns, sem demonstrar apoio incondicional a Trump, votaram no empresário de sucesso apenas pela experiência na economia e em negociações, afinal, a América é a terra da oportunidade. Outros votaram contra Hillary Clinton e sua plataforma de governo que já demonstrava que o Partido Democrata fazia uma guinada severa à esquerda radical. No entanto, como uma grande nação cristã, um dos pontos mais importantes que pesaram a balança a favor do malcriado do Twitter foi o foco “na floresta, e não na árvore”, como dizem por aqui. Principalmente para os eleitores nada nada Trumpistas. O alvo? A Suprema Corte Americana.

Em 2016, em seu último ano na Presidência, Barack Obama teve a chance de nomear um juiz para a Suprema Corte, Merrick Garland, para suceder a Antonin Scalia (nomeado por Ronald Reagan) e que havia falecido em fevereiro daquele ano. Na época, comentaristas políticos e historiadores reconheceram amplamente o juiz Scalia como um dos membros mais conservadores do Tribunal e observaram que Merrick Garland, um centrista para muitos, seria um substituto menos conservador — mudando assim o equilíbrio ideológico do Tribunal por muitos anos no futuro. A confirmação de Garland daria aos democratas uma maioria na Suprema Corte pela primeira vez desde 1970. Com maioria no Senado em 2016, os republicanos não votaram a indicação de Obama, e a decisão que pesasse a balança ideológica da SCOTUS ficou para o presidente eleito em novembro de 2016.

Com uma mancha brutalmente ativista em sua história, o famoso caso Roe vs Wade, processo usado pela Suprema Corte Americana para legalizar o aborto em 1973, muitos cristãos, republicanos, democratas e independentes que são contra o aborto taparam o nariz em 2016, miraram na floresta e ajudaram a eleger Donald Trump. O principal motivo, de acordo com uma pesquisa em 2017, foi exatamente o pensamento voltado para o tribunal mais alto nos EUA: resgatar a maioria na Corte e trabalhar para reverter a lei que nasceu de um ativismo judicial histórico e que já ceifou a vida de quase 63 milhões de bebês desde 1974. 

Protestos após a Suprema Corte dos EUA derrubar Roe vs Wade, no dia 24 de junho de 2022 | Foto: Shutterstock

Eleição ganha em 2016, logo em abril de 2017, Neil Gorsuch, um defensor do originalismo na interpretação da Constituição dos Estados Unidos (o que os Pais Fundadores estabeleceram nos documentos) foi confirmado para a SCOTUS através da primeira nomeação de Trump. Em 9 de julho de 2018, o presidente Trump nomeou mais um juiz conservador para a Suprema Corte dos EUA, Brett Kavanaugh, desta vez para preencher o cargo vago pelo juiz Anthony Kennedy, que havia se aposentado.

A balança, até então sólida para o lado progressista e ativista, havia finalmente sofrido severo dano. Para aqueles que votaram em Donald Trump de olhos fechados, mas com olhos na Suprema Corte — aqueles que clamavam e defendiam que 2016 seria uma eleição para 40 anos, e não apenas quatro —, o trabalho estava iniciado e a partir dali seria uma questão de tempo até a Corte revisitar o diabólico Roe v. Wade. A Suprema Corte nos EUA é sempre um assunto extremante estratégico para qualquer presidente nos EUA — e deveria ser para nós brasileiros também. Em 2020, a morte de uma importante juíza da ala mais progressista da Suprema Corte Americana, Ruth Bader Ginsburg, deu a Donald Trump mais uma indicação para o Supremo Tribunal. Embora a juíza tenha sido uma mulher discreta, ela se tornou um ícone da esquerda norte-americana ainda em vida, muito por suas decisões inflamadas, recheadas de ativismo e interpretações muito particulares acerca da Constituição norte-americana. Ginsburg tinha uma visão para a América de “tornar a América mais justa, para tornar a justiça maior”. Algo como um Barroso de saias nos EUA.

O vencedor das nossas eleições no segundo turno no Brasil em 30 de outubro indicará dois — DOIS! — ministros para o Supremo Tribunal Federal em 2023. Depois de tudo que vimos nos últimos dois anos, tantas barbaridades inconstitucionais cometidas por aqueles que deveriam respeitar e proteger nossa Constituição, o que mais precisamos testemunhar para fazer retórica pergunta se o Brasil aguenta mais dois Barrosos, dois Alexandres ou dois Fachins — indicados por um corrupto que estava preso e que foi solto exatamente por uma manobra ativista da Corte?

Barroso ou Ginsburg não representam minorias ou mulheres como tentam se autorretratar. Eles estampam muito mais. Eles são a configuração do tipo de “jurisprudência” que essa espécie de ungido pratica: o ativismo judicial em sua mais pura essência. Não há uma palavra sequer sobre aborto nas Constituições norte-americana e brasileira, e é absurdo pensar que tal direito estava (ou está) escondido, esperando para ser descoberto por advogados ou juízes progressistas que de alguma forma veem a Constituição “real” como algo que precisa ir mudando de acordo com a sociedade ao prazer de suas canetas. Para esses moradores das torres de marfim, há “direitos” e outros elementos que são magicamente descobertos na Constituição — sem passar pelas Casas Legislativas. Fazer leis não é tarefa de juiz. O trabalho do juiz é garantir que a lei seja seguida e aplicada num determinado caso. Não importa se a lei é injusta — isso não é uma premissa do Judiciário. Se alguém tem uma visão para a América ou para o Brasil e deseja tornar as leis mais justas, então há um lugar para você: o Congresso. É ali que as leis são feitas. 

Ruth Bader Ginsburg

Para 30 de outubro, a situação para os milhões de brasileiros, como eu, que defendem a vida fica mais frágil ainda com a vitória do ex-presidiário. Não são apenas os dois ministros indicados para o STF que trazem preocupação, mas o fato de que Lula diz abertamente ser a favor da legalização do aborto e o pior: a já anunciada implementação da prática diabólica de ceifar vidas inocentes no ventre de suas mães como “política de saúde pública”, ladainha demoníaca também empurrada aos norte-americanos usando Roe. V. Wade. Por décadas, os regressistas (chega de escrever progressistas) na Suprema Corte dos EUA lutaram para justificar a decisão de Roe v. Wade, mas sempre foi muito difícil defender o indefensável. Em Roe v. Wade, os juízes simplesmente inventaram um direito que não existe. E este foi um erro lamentável que não apenas tirou dos Estados o direito e a autonomia para decidirem a questão através de suas legislaturas estaduais, mas ceifou a vida SESSENTA E TRÊS MILHÕES de bebês nos ventres de suas mães desde os anos 1970.

A democracia não é muito boa em muitos aspectos, ou sequer perfeita, mas as instituições democráticas são a forma como resolvemos essas divergências

Para aqueles que taparam o nariz e votaram no malcriado do Twitter exatamente pelas indicações à SCOTUS para a reversão de Roe v. Wade, os dividendos foram colhidos em 2022. Depois de quase meio século, os eleitores norte-americanos finalmente tiveram seus direitos restaurados sobre a questão do aborto. Em junho deste ano, a decisão mais desonesta e destrutiva da história dos Estados Unidos finalmente foi derrubada. A Suprema Corte, com maioria conservadora graças a Donald Trump, anulou Roe v. Wade e, efetivamente, encerrou o reconhecimento do “direito constitucional” ao aborto, dando aos Estados o poder de permitir, limitar ou proibir completamente a prática. Uma vitória não apenas para aqueles que são contra o aborto, mas para aqueles que têm Constituições como o único norte possível em uma nação séria, já que o que sempre esteve no centro desse debate não era apenas a sagrada proteção à vida humana, defesa importante para um país fundado em preceitos cristãos, mas a manutenção de um dos pilares mais preciosos da república norte-americana: o federalismo e a autonomia dos Estados de passar suas próprias leis de acordo com o que a população deseja.

Para milhões de cristãos nos EUA, o voto em Donald Trump em 2016 tinha um objetivo bem maior que todos nós: a proteção à vida humana. Em uma passagem de uma decisão da Suprema Corte de 1992, no caso Planned Parenthood vs. Casey, o juiz Anthony Kennedy, também nomeado por Ronald Reagan, escrevendo para a maioria, disse: “No coração da liberdade está o direito de definir o próprio conceito de existência, de propósito, de universo e do mistério da vida humana. Crenças sobre esses assuntos não podem definir os atributos da personalidade se forem formadas sob coação do Estado”. Derrubar Roe. v. Wade não encerrará a luta para proteger a vida humana no útero, mas é uma das batalhas mais importantes para os cristãos aqui nos Estados Unidos, principalmente pelo que o caso simboliza no mundo, com eco também no Brasil.

Alguns de nós têm ideias sobre o que é justo, decente, bom, prudente e necessário que são radicalmente diferentes das ideias que outros norte-americanos ou brasileiros têm sobre o que é justo, decente, bom, prudente e necessário. A democracia não é muito boa em muitos aspectos, ou sequer perfeita, mas as instituições democráticas são a forma como resolvemos essas divergências. É disso que elas derivam sua legitimidade. A democracia tem suas deficiências — principalmente enraizadas no fato de que os seres humanos são universalmente falhos, mas a alternativa — a de não obedecer ou respeitar os pilares institucionais de uma nação — é inflamar a sociedade, já tão inflamada, por causa de desentendimentos. E talvez algumas graves fagulhas que estejam mantendo o fogo da discórdia aceso estejam vindo exatamente dessas falhas de nossas instituições em se manterem em suas esferas e prerrogativas. 

Foto: Fátima Meira/Estadão Conteúdo

A verdadeira fissura que atravessa a SCOTUS e o STF não é entre os chamados progressistas e conservadores, mas entre aqueles que acreditam que os juízes são superlegisladores — a grande maioria hoje no Supremo Tribunal Federal — com poderes para impor sua própria visão sobre a sociedade, e aqueles que acreditam que os juízes são limitados pelo que a lei realmente diz. Podemos escolher o que falar, o que fazer, como votar — mas não podemos escolher as consequências de atos levianos, impensados ou imaturos.

Há muito em jogo nesta eleição presidencial no Brasil e, assim como a de 2016 nos EUA, será marcada pela pavimentação dos próximos 40 anos — e não apenas quatro. Há muito em jogo nos campos sociais, econômicos, intelectuais — fato. Mas há algo maior também em jogo — a sagrada proteção à vida humana e ao direito nos dado por Deus de nascer. Em 30 de outubro, cabe a nós, cristãos, sermos também a voz dos milhões de vidas inocentes que ainda não podem falar.

Título e Texto: Ana Paula Henkel, Revista Oeste, nº 133, 7-10-2022

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