sábado, 3 de junho de 2023

O fim da propriedade privada

Se o marco temporal cair, qualquer propriedade poderá ser reivindicada pela União, usando como argumento o fato de a área ter sido, um dia, no passado remoto, terra indígena

Roberto Motta

A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira, 30 de maio, o Projeto de Lei 490/07, que trata do marco temporal da ocupação de terras por povos indígenas. A proposta agora será enviada ao Senado.

Imagem: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

O projeto restringe a posse de terras indígenas àquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos no dia 5 de outubro de 1988, a data da promulgação da Constituição Federal.

O PL do Marco Temporal é um passo importante dado pelo Congresso para tratar de uma questão com potencial explosivo — uma questão cujas implicações vão muito além da demarcação de reservas indígenas. Ela afeta um dos direitos fundamentais do cidadão: o direito à propriedade.

Vejamos como isso acontece.

Se o PL 490/07 for aprovado pelo Congresso, ficará estabelecido em lei que o marco temporal para determinar a posse de uma terra pelos índios é sua ocupação no dia 5 de outubro de 1988.

Esse é, também, até agora, o entendimento do STF. Mas o tribunal está julgando novamente essa questão. No julgamento, que está em andamento, já foram proferidos dois votos. O ministro Nunes Marques votou a favor da manutenção do marco temporal. O ministro Edson Fachin votou contra o marco.

Há um aspecto dessa questão que a torna relevante para todos os brasileiros: a maior parte do território nacional já foi, um dia, ocupada por índios. Se não houver um marco temporal claro, qualquer área do território brasileiro poderá ser considerada área indígena, por ter sido ocupada por índios em uma data qualquer do passado.

E aqui entra um detalhe desconhecido da maioria das pessoas: embora a posse das terras indígenas seja dos índios, a propriedade das áreas é da União. Uma vez que uma área seja declarada terra indígena, sua propriedade é atribuída à União. Este é o sistema legal: os indígenas podem ter a posse da terra, não sua propriedade.

Isso não é ficção ou teoria da conspiração. Na verdade, a União já tentou tomar a propriedade de milhares de brasileiros.

O secretário de Justiça do Estado de São Paulo, que foi juiz federal e presidente do maior tribunal federal do Brasil, Fábio Prieto, cita inúmeros exemplos de processos julgados pela Justiça.

Nesses processos, cidadãos pediam a declaração de propriedade por usucapião de suas casas, todas situadas em áreas urbanas de São Paulo. 

Em milhares desses casos, a União entrou nos processos pedindo a propriedade dos imóveis, sob o argumento de que, no passado remoto — há 200 ou 300 anos —, essas áreas foram ocupadas por indígenas.

O resultado desse julgamento pode afetar todo o território nacional, principalmente a propriedade urbana privada.

E foram mesmo. Isso é demonstrado pelos próprios nomes dessas áreas: Carapicuíba, Ubatuba, Guarujá. No Rio de Janeiro temos Ipanema (“lago fedorento” em tupi-guarani), Tijuca (“água podre”) e Jacarepaguá (“lagoa cheia de jacarés”). Mas essa ocupação aconteceu no passado remoto.

Repetindo: o governo federal pedia a propriedade de imóveis privados usando como argumento o fato de que as áreas foram, um dia, ocupadas por índios.

É lógico que os pedidos da União foram negados. O julgamento repetido de casos como esses levou à formulação da Súmula 650 do STF, que diz que “Os incisos I e XI do art. 20 da CF não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”.

Essa é a posição que pretendem rever.

O resultado desse julgamento pode afetar todo o território nacional, principalmente a propriedade urbana privada.

Se o marco temporal cair, qualquer propriedade privada poderá ser reivindicada pela União, usando como argumento o fato de a área ter sido, um dia, no passado remoto, terra indígena.

Explicando de outra forma: o governo federal terá o poder de decretar o fim da propriedade privada, quando assim o desejar.

É isso que está em jogo nesse caso.

Título e Texto: Roberto Motta, Revista Oeste, nº 167, 2-6-2023

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