A dicotomia esquerda-direita tem sido uma
excelente bengala para manter o registro político a preto-e-branco, forçando um
reducionismo da realidade que é bem mais complexa. Por isso pouco me interessa
José Luís Andrade
Em primeiro lugar porque
detesto ser etiquetado por outros, encaixado em categorias alheias.
Historicamente, a direita começou a ser apresentada como o lugar dos que se
opunham ao «avanço irreversível dos ventos de mudança», ou seja, os reacionários,
os conservadores, os tradicionalistas, os nacionalistas. A catalogação nasceu
da referência «progressista» que foi a Revolução Francesa.
Em 11 de Setembro de 1789,
duas semanas depois da proclamação pública dos Direitos do Homem e do Cidadão,
os deputados franceses votavam a atribuição ao Rei do poder de veto às decisões
da Assembleia. Para facilitar a contagem dos votos, os que eram favoráveis à
limitação daquele poder colocaram-se à esquerda do presidente da Assembleia e
os outros, defensores de o Rei poder recusar a promulgação, à direita. Ganhou a
«esquerda» por 673 votos contra 375. A partir daí, a imprensa mais sensível aos
políticos revolucionários irá começar a usar aquela terminologia de relação
para etiquetar as colocações políticas dos blocos. E em outubro daquele mesmo
ano os deputados favoráveis à Revolução passarão a sentar-se naturalmente à
esquerda do presidente da Assembleia e os hostis, reformistas ou
recalcitrantes, à sua direita. O esquema passará a marcar desde então a
geometria política, assumindo contornos dramáticos quando a Assembleia Nacional
francesa decidiu em janeiro de 1793 sobre a vida ou morte do rei Luís XVI. Dos
726 deputados presentes, 387 dos que se sentavam à esquerda votaram pela
execução, 334 da «direita» votaram contra ou pela suspensão e 5 abstiveram-se.
Hoje, volvidos 230 anos sobre
aquele marco ideológico, a esquerda usa a classificação, identificando a
direita com os «maus» e os seus com os «bons». O pensamento esquerdista,
alicerçado nas velhas alianças progressistas dos anos trinta, enquadradas e
alimentadas pela Komintern, soube aproveitar a onda antifascista dos anos do
pós-Segunda Guerra Mundial. Durante mais de 75 anos o seu pendor dominou a
superestrutura cultural, promovendo um doutrinamento a partir do próprio
aparelho educativo e comunicacional do Estado que inculca subliminarmente nas
mentes mais simples aquela dicotomia. Ainda me recordo bem de, em 1971, no
Instituto Superior Técnico, António Guterres ser referido como um indesejável
elemento de direita, porque defendia a socialdemocracia de Olof Palme, tão
radicalizado estava o espectro político de então.
Na sequência do vazio
ideológico deixado por quarenta anos de Estado Novo, durante o qual as pessoas
foram habituadas a não ter de pensar, suspensos na presciência do chefe, quando
a chamada direita procurou levantar cabeça, opondo-se ao figurino cozinhado
para a «descolonização», os seus partidos foram «democraticamente» proibidos.
Com a tag corrigida ao centro, nela passaram a caber os
advogados do híper-europeísmo federal a par de defensores da limitação da
alienação de soberania, liberais (com todos os prefixos e ambiguidades)
defensores do laissez faire laissez passer quer em economia
quer em costumes, partidários do materialismo individualista de mistura com
gente defensora de atitudes solidárias no campo social.
Hoje, há uma total inversão
nos processos teleológicos que influenciam a nossa vida. Antigamente era a
Igreja que se preocupava com a nossa salvação final. Agora é a esquerda
«redentora» que se preocupa com o fim do mundo, alheia às preocupações dos mais
aflitos com o fim do mês. Ocupam-se de forma intrusiva com o que se diz,
brinca, come ou fuma, mas a obesidade mental é-lhes indiferente. No passado a
esquerda invocava a ciência para ancorar o seu pensamento; hoje quando o
conhecimento demonstra a fragilidade e o erro das suas crenças rejeita-a e
silencia-a. Os seus rebentos mais radicais, como os grupos Antifas ou
algumas ONG, tornaram-se instrumentos do capitalismo especulador que se nutre
da ruptura social e do caos. Na agenda globalista, cujos clichés e trends nos
entram todos os dias e a todas as horas pela porta adentro, pela televisão ou
pelas redes sociais, estão presentes os objetivos de nos fazer dóceis
consumidores de produtos virtuais embrulhados em causas pretensamente
altruístas que mais não escondem que vultosas negociatas.
A direita tradicional foi
sempre menos utópica que a esquerda e mais próxima do país real. Mas hoje está
mais preocupada com o que pensa o Príncipe Real, encurralada na navegação à
vista do politicamente correto, perdidas as causas norteadoras e definidoras. E
nem os partidos emergentes questionam as viciadas regras do jogo mediático,
encantados com a perspectiva de se verem na televisão ou nas revistas de
«referência». Nem mesmo recusam o referencial político da discussão que
apresenta sempre subjacente, como pano de fundo, o modelo
social-democrata/socialista como se não existissem alternativas de pensamento.
E discutem, como os outros, os «temas do dia» deixando de fora o que é
realmente essencial, importante e de fundo. Muito disto se deve ao facto de a
esquerda se considerar a natural dona do Estado e a legítima detentora dos meios
de comunicação e sancionatórios. «A nação é de todos, mas o Estado é nosso!» já
dizia em 1915 o jacobino João Chagas.
A crescente tribalização da
cena política portuguesa é consequência de um despotismo oligárquico que
condiciona e filtra o voto popular ou qualquer intervenção cívica discordante.
A corrupção endêmica não resulta de um qualquer obscuro desígnio mafioso, mas
da concepção do próprio sistema que, por degenerado paternalismo, insiste em
não querer libertar os portugueses do seu retrocesso educativo, da
insuficiência cultural e da dependência econômica. O peso do Estado é hoje o
principal óbice ao crescimento econômico, que é o fator que nos poderá libertar
do ciclo da dependência externa com que os sucessivos governos têm vindo a
hipotecar o futuro.
Percebe-se que o
posicionamento de qualquer força no espectro político é ditado pelo relativismo
cultural e moral, ao sabor das conveniências, interesses e crenças dos
bonecreiros que pretendem controlar a comunicação com os eleitores. O que é verdadeiramente
controverso não são as prestidigitações orçamentais, os dossiers mediáticos, as
sanções judiciais ou o ninho do estorninho da Agualva. O que está objetivamente
em disputa não são os artistas, mas o guião, ou seja, as causas.
Com a agressiva intolerância dos fundamentalistas do animalismo e o fanatismo distópico da ideologia do gênero, é a inversão da forma natural de ver o mundo que a esquerda tenta impor. Hoje já não é a cabeça do Rei que está em causa. O que verdadeiramente assusta é que se uma qualquer criança candidamente comentasse, «mas o Rei vai nu» seria imediatamente trucidada.
Com a agressiva intolerância dos fundamentalistas do animalismo e o fanatismo distópico da ideologia do gênero, é a inversão da forma natural de ver o mundo que a esquerda tenta impor. Hoje já não é a cabeça do Rei que está em causa. O que verdadeiramente assusta é que se uma qualquer criança candidamente comentasse, «mas o Rei vai nu» seria imediatamente trucidada.
A dicotomia esquerda-direita
tem sido uma excelente bengala para manter o registto político a preto-e-branco,
forçando um reducionismo filtrado da realidade que é bem mais complexa e que já
deveria ter chegado pelo menos ao 3-D. Nesse contexto, direita ou esquerda
pouco me interessa. Estarei com quem defender a primazia da Soberania nacional
sobre a dissolução internacionalista ou metanacional; com quem aceitar diminuir
drasticamente o peso do Estado, aplicando o princípio da Subsidiariedade por
forma a potenciar uma sociedade civil sã e enérgica; e com quem estiver
disposto a temperar socialmente esse princípio, articulando-o com a
verdadeira Solidariedade social, considerando o integral
direito à Vida e o dever que todos temos de proteger os mais débeis e
vulneráveis e garantir a igualdade de oportunidades. Porque perante uma
incontornável ofensiva totalitária o que está em causa é a própria Liberdade.
Título e Texto: José Luís
Andrade, Observador,
3-10-2019
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