sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

[Aparecido rasga o verbo] A pior de todas as mulheres

Aparecido Raimundo de Souza

DE REPENTE essa gatinha manhosa aparece na nossa frente. De corpo escultural, olhar pecaminoso, lábios sensuais e com gosto de mel. É assim mesmo que ela pinta do nosso lado, saída, até agora, não se sabe de onde. No fundo, uma linda mulher, todavia, um estranho ser forasteiro. Chega de mansinho, pacata, serena, sossegada, sem dizer nada. Sem bater na porta, sem avisar que está vindo.  Se faz presente, viva, pulsante, e pior, sem dar um telefonema, sem mandar um e-mail, um WhatsApp. Sorrateira se aproxima e simplesmente nos pega distraídos, alheados, absortos, despreparados, esquecidos de nós mesmos, tipo assim, de calças curtas.

Foi assim. Vapt-vupt. Sem tirar nem acrescentar. De forma sorumbática e taciturna, com meu padrasto Jorge. Ele se levantou, junto com mamãe, como todos os dias, e, como sempre inalteradamente fizera durante os vinte anos em que viveram juntos. Enquanto mamãe tomava banho, ele lavava a louça do dia anterior que ficava na pia da cozinha, depois se sentava no sofá da sala, no seu lugarzinho predileto, de frente para a televisão para assistir a primeira edição do jornal da tevê. Quando mamãe saia do chuveiro, ele pedia que ela preparasse um café reforçado. Dessa forma rápida e rasteira, se sucedeu, no dia em que nos deixou de vez.

Ela mal acabara de coar a bebida e de esquentar os pães no forno. Lá mesmo, da sala, ele deu linha à pipa e bateu asas. Não deu um sinal, não avisou ninguém, não deixou um bilhete de despedida, nem chamou a companheira de tantos janeiros para lhe dar um último beijo, ou um derradeiro adeus.  Simplesmente viu a mulher encantada entrar na sala e sorrir para ele. Sorrir lindamente saltitante e alegre, com uma rosa vermelha numa das mãos. Jorge apoiou a cabeça no encosto do sofá, e, como um passarinho que encontra a porta da gaiola aberta, se deixou levar.

Fechou-se num acalanto profundo e arrefeceu num silêncio imenso e constrangedor. Um silêncio denso e pesado que, de tão tétrico, se acresceu a outros aparentados. Mamãe, coitada, à hora em que caiu a ficha e deu conta do inevitável, do que realmente acontecia, começou a gritar, desesperada, acordando, sobressaltada, os demais que estavam, ainda, entregues aos abraços do descanso. Não foi diferente com meu avô João. Vovô João partiu com a mesma bonitona de vestidinho curto, deixando entrever a calcinha azul entre as pernas bem torneadas.

Saiu com ela, alegre, de braços dados, depois de trocarem algumas palavras no lugar que mais gostava de estar. Sentado confortavelmente num banquinho de madeira tosca debaixo de um velho pé de carvalho centenário, de frente para a margem de um riozinho que corria a alguns metros da casa principal da fazenda. Vovó Marta, da cozinha, pela janela que dava para a enorme varanda, enquanto preparava o primeiro dejejum, costumava vigiá-lo.

Naquele dia, entretanto, notou que ele estava muito tempo numa posição só, estático, imóvel, como se meditasse o contemplativo à sua volta, sem se mover. Geralmente, ao tomar assento, vovô João parecia estar falando com alguém. Tinha mania de gesticular com as mãos e mostrar alguma coisa imaginária para as bandas do pasto enorme que se perdia de vista. Diante da quietude estranha, vovó chamou por ele várias vezes, mas o bom velhinho não respondeu: vovó pensou, então, no pior.

Ao acorrer, junto com a Maria Preta, que ajudava nos afazeres do dia a dia, se deparou, realmente, com o desastroso consumado. A dama misteriosa havia se antecipado e chegado primeiro que todos. Fatal! Tio Alfredo, irmão de vovô, igualmente, se pôs a viajar sem dar sinais de que pretendia fazê-lo tão cedo. Depois de guardar o carro, e, sem se afastar de dentro da garagem. Encontraram o corpo do pobre infeliz meia hora depois, caído ao lado da porta que levava ao interior da residência.

O fato é que deixou um vazio imenso por todos os cômodos. A tia Marília e meus primos Edinho, Mônica Luciana e Aretha, igualmente numa situação de melancolia e desgosto indescritíveis. Quem mais sentiu a perda do tio Alfredo, com certeza, a caçula dos quatro filhos que teve com a tia. Faço referência a Aretha. Pôr quase uma semana a minha prima se trancou no quarto sem comer e beber. Não houve viva alma que conseguisse demovê-la da ideia de abandonar os retratos do pai, guardados, com carinho, numa caixinha de sapatos.

Essa misteriosa senhora ou (seria senhorita?!) é assim: sagaz, excêntrica, desconcertante, astuta, hábil e maquiavélica em enganar ricos e pobres. Ardilosa, atemorizante, malvada, inimiga, dona de uma frieza acima de qualquer suspeita.  Sabe como ninguém destruir as fortalezas de sentimentos, os alicerces de afetos e as paredes sólidas das emoções profundas que existem dentro de cada um de nós. Possui uma clareza em seus atos, que espanta. É tão resplandecente a sua presença em nosso meio, que cega os olhos de quem a vê. Torna-se, ao mesmo tempo, clara e transparente, radiosa e febricitante para aqueles a quem busca para seguir com ela na grande viagem sem volta. No passeio em que não há discussão, tampouco bate boca, meios termos ou retorno.

É tão concisa na sua determinação quanto precisa na definição do que quer e deseja. Com ela não há o minuto seguinte, o deixar para depois, o voltar amanhã, ou o mais tarde. É agora e pronto.  Sua vontade prevalece sempre, haja o que houver e fim de papo. Sua lucidez espanta e atemoriza como as suas travessuras e diabruras atormentam através dos séculos. Essa moçoila de cabelos compridos e soltos ao vento tira, na verdade, o sono e a tranquilidade de muita gente. Mexe com estudiosos e doutores do mundo inteiro. Nesse pé, até hoje, ninguém teve o prazer de vir a público e gritar, aos quatro cantos do universo, que conseguiu decifrar os seus mistérios.

Talvez eu consiga, não sei... Talvez eu objetive atinar com o secreto, com o oculto, com o segredo, claro, no dia que chegar a minha vez de me encontrar e não só me encontrar, de embarcar com ela, a esfuziante gatinha manhosa, para visitar rincões distantes, conhecer cidades perdidas, rever pessoas que não via ha tempos. Beijar, apertar mãos, abraçar criaturas no imenso do fantástico, de passear pôr ruas e avenidas cercadas de anjos ou de topar, quem sabe, numa esquina de nuvens, ou numa praça cheia de flores multicoloridas, o velho Jorge, o vovô João, ou o tio Alfredo, ou, quem mais, pôr ventura, tiver partido com essa jovem ambígua e insondável antes de mim...   
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 6-12-2019

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