sábado, 25 de fevereiro de 2012

PPP e negócios privados

Não há Estado digno desse nome que não cumpra com as suas obrigações. Mas, nestes dias de pressão sobre as famílias, seria criminoso cumprir com um único contrato suspeito
Pedro Camacho
Era Sócrates membro de um Governo de Guterres, numa altura em que tinha a seu cargo a defesa do consumidor, quando tentou fazer aprovar legislação para combater o excesso de endividamento das famílias, ideia que passava por corresponsabilizar os credores (a banca, sobretudo) pelas situações concretas de sobre-endividamento dos cidadãos. Intenção que, na altura, mereceu muitas críticas, pelo paternalismo subjacente. Hoje, temos de o reconhecer, a iniciativa mereceria outra atenção. Assim como hoje, é necessário também dizê-lo, é uma pena que Sócrates não pensasse (e tenha continuado sem o fazer) da mesma maneira em relação ao sobre-endividamento do Estado. Se tal tivesse acontecido, já tínhamos responsabilizado alguém por alguns contratos duvidosos. E, se calhar, também não estaríamos a apanhar hoje com o paternalismo alemão.
Luís Campos Ferreira, presidente da Comissão Parlamentar de Economia e Obras Públicas, faz um balanço cristalino da análise e discussão parlamentar das Parcerias Público-Privadas. As PPP são, segundo declara em entrevista ao Jornal de Negócios, "uma bomba-relógio com retardador". Sejam as autoestradas com portagens virtuais, sejam outros tipos de parcerias da mesma natureza entre as administrações públicas e empresas privadas, no âmbito da Saúde ou da responsabilidade das autarquias, serão situações explosivas adormecidas, que rebentarão um dia na mão do Estado, ou seja, nas nossas mãos.
A situação é de tal forma dramática que a Assembleia da República ficou sem saber exatamente quanto é que o Estado deve em PPP, quanto é que terá de pagar anualmente e até quando terá de pagar pelos projetos já executados ou contratos em curso. Pior, Luís Campos Ferreira tem fortes receios do que se poderá descobrir, quando começar o levantamento das PPP celebradas entre privados e autarquias. E, por muito inacreditável que pareça, o deputado do PSD é taxativo quando afirma que, em relação às PPP já contratualizadas mas ainda não executadas, "não podemos entrar na tontaria da discussão do que é mais barato: fazer [as obras] ou pagar aos privados [as indemnizações]". Porque, segundo diz, não as podemos fazer nem tão-pouco podemos pagar: "Temos de encontrar uma solução jurídica. Isto para o que está por fazer. O resto tem de ser tudo negociado."

Charge: Ivam Cabral

A frase é chocante. Não pelas mesmas razões da célebre e recente declaração de Sócrates de que "as dívidas públicas não são para pagar", afirmação de uma bizarra convicção. Neste caso, pelo contrário, o que é chocante é a declaração de que o Estado não deve sequer discutir a execução dos contratos que assinou, porque não tem como os cumprir. A resposta tem sempre de ser outra. A mesma que qualquer outra pessoa, "não-Estado", teria de dar, a de procurar uma solução alternativa junto do credor.
O Estado tem de cumprir com os seus compromissos, sejam externos sejam internos. Não é só por uma questão de princípio, é porque é fundamental para que tudo o resto funcione. Mais uma vez, quer se trate de dívida ao exterior ou de dívida a agentes nacionais, não há Estado digno desse nome que não cumpra com as suas obrigações. Como também não há país, não há comunidade política organizada, que funcione sem o respeito por esse princípio. A não ser que o credor não o mereça...
O que nos leva a uma outra questão, prévia à primeira - e que não é teórica, já que o próprio presidente da Comissão Parlamentar de Economia e Obras Públicas a levanta. De que forma foram, em cada uma das PPP, devidamente (diligentemente) salvaguardados os interesses do Estado? Foi cada um destes compromissos ponderado e enquadrado, quer do ponto de vista legal quer do ponto de vista da sustentabilidade e responsabilidade financeira? Foi o interesse público determinante, e devidamente salvaguardado, nestas PPP, ou andou alguém a favorecer outrem à custa dos dinheiros públicos e com prejuízo do Estado? A resposta a esta pergunta continua a ser essencial. Porque ela é prévia a qualquer decisão de pagamento ou não pagamento. E é também fundamental para se exigir responsabilidades a privados e governantes, ou não o fazer.

As audições na Comissão Parlamentar de Economia e Obras Públicas não foram conclusivas nesta matéria e, segundo afirma o seu presidente, é duvidoso que uma comissão parlamentar de inquérito conseguisse ir muito mais longe. Resta, por isso, à Procuradoria-Geral da República, entidade a quem cabe promover, junto dos tribunais, a defesa dos interesses do Estado, dar esse passo - e, como afirma Campos Ferreira, "qualquer procurador ouviu o que se disse sobre as SCUT e as PPP".
É fundamental, hoje mais que nunca, que as coisas fiquem devidamente esclarecidas. Por mim, não gosto de ouvir um deputado da maioria governamental dizer que o Estado não deve pagar uma dívida a um privado, mesmo que seja por não ter dinheiro. É um precedente muito perigoso. Mas esse mesmo deputado terá todo o meu apoio no dia em que se descobrir que essa dívida tem origem num negócio que foi celebrado com má-fé, abuso de poder e subordinação do interesse público a interesses privados ilegítimos. Nos tempos que correm, com tantas famílias e empresas em estado crítico de sobrevivência, seria verdadeiramente criminoso cumprir com um único contrato suspeito.
Título e Texto: Pedro Camacho, revista Visão, nº 989, de 16 a 22-02-2012

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