Quando morre um cão, há uma tristeza específica. É fina e espeta-se no
pensamento. Aleija só de imaginar. Deriva da pena de não termos sido capazes de
estar à altura da pureza, da generosidade absoluta
José Luís Peixoto
Está deitada ao meu lado, a
ressonar. Acredito que o som dos meus dedos no teclado do computador também a
tranquiliza: o ritmo certo/incerto destas palavras: letras-letras-letras espaço
letras-letras-letras espaço. Se assim for, se a minha escrita contribuir para a
paz do seu sono, está apenas a devolver-lhe aquilo que também recebe deste
corpo encostado a mim, a respirar profundamente, como se essa fosse a sua
resposta ao tempo.
Quando lhe pouso a mão em
cima, deixa-me fazer tudo. Não se incomoda. Essa é a forma que tem de mostrar a
sua confiança ilimitada. Não acorda, como se escolhesse não acordar. Oferece o
corpo às minhas festas e, se a aperto com um pouco de mais força, deixa escapar
um som de prazer preguiçoso, arrastado, nasce-lhe na garganta.
Noutras horas, quando sente um
barulho mínimo nas escadas, começa por rosnar e, se o barulho continua, quer
ladrar contra a porta fechada. É preciso chamá-la e convencê-la a pensar noutro
assunto. Agora, esses episódios parecem histórias inventadas. Neste momento,
abrir os olhos e voltar a fechá-los logo a seguir é o máximo de incómodo que
aceita. Está tão calma, tem tanto vagar. Às vezes, debaixo das minhas festas,
espreguiça-se longamente. Depois, perde a força nos músculos e afunda-se ainda
mais no sono.
Eu já estava aqui sentado, a
escrever, quando ela chegou muito direita. Caminhou na minha direção sem
hesitar, com as patinhas a riscarem um som leve. Numa agilidade súbita, deu um
pequeno salto e ficou ao meu lado. Então, encostou-se à minha perna, formámos
uma pequena união de calor, e adormeceu.
Foi também assim que chegou à
minha vida. Eu não esperava nada, não procurava nada, ela chegou e, sem forçar,
conquistou-me inteiro com a sua presença. Quando lhe faço festas na cabeça, os
seus olhos descobrem-se entre o pêlo. Há uma certa tristeza nesse olhar antigo,
como se carregasse restos de uma mágoa. Compreendo-a e, às vezes, chego a
acreditar que também ela me compreende a mim, também ela é capaz de distinguir
essa mesma idade no meu olhar, esse silêncio. Encontrámo-nos aqui, mas viemos
de lugares distantes.
Durante o dia, passeia sossegada pela casa. Só ela sabe onde vai. Com frequência, escolhe um quadrado de sol no chão e deixa cair as orelhas. Nessas ocasiões, está preparada para qualquer surpresa.
De todas as palavras que
existem no mundo, há duas que a enchem de eletricidade: "rua" e
"bola". Rejuvenesce com cada uma delas, enlouquece. Na rua, muito
interessada, como se estivesse a tomar conhecimento das últimas notícias, vai
sempre cheirar os mesmo cantos. Fingindo não fazer caso, partilhamos o pudor do
momento em que baixa as duas patinhas de trás e, depois, se afasta de uma
pequena poça de chichi. Com a bola, dá saltos no ar, apoia-se em duas patas,
chega a ficar assim alguns segundos, como no circo, e parece cega quando corre
para apanhá-la. Vai buscá-la onde for preciso.
Quando eu andava na escola
primária, numa visita de estudo ao Jardim Zoológico de Lisboa, admirei-me com o
cemitério dos animais de estimação. Estava habituado a cães que mal tinham
nome, que eram levados numa saca e enterrados no campo. Durante anos,
habituávamo-nos a ver um cão quando passávamos numa certa rua, depois, um dia,
deixávamos de vê-lo. Era assim.
Hoje, com esta cadelinha,
sinto-me como aquele velho mal-humorado, a queixar-se de tudo, a culpar sempre
os outros, mas que se derrete com os netos, lhes permite tudo, e quase parece
outra pessoa. Talvez por isso, sou agora capaz de compreender que, quando morre
um cão, há uma tristeza específica. É fina e espeta-se no pensamento. Aleija só
de imaginar. Deriva da pena de não termos sido capazes de estar à altura da
pureza, da generosidade absoluta.
Aqui, o tempo desta sala
continua à mesma cadência, letras-letras-letras espaço letras-letras-letras
espaço. Às vezes, ela estremece de repente. O arco da respiração perturba-se.
Está talvez a sonhar. Aperto-a de encontro a mim. Nada te pode fazer mal,
pequenina. Eu protejo-te com a mesma dedicação com que me proteges. Esta
companhia que partilhamos é eterna.
Título e Texto: José Luís Peixoto, revista Visão, fevereiro de 2013
Indicação: Alberto de Freitas
Indicação: Alberto de Freitas
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Este editor e Kenzo, dezembro de 2011 |
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