Valdemar Habitzreuter
Quando falamos ou escrevemos
expomos nossos pensamentos. Isto é, fazemos uso da linguagem. Há uma
interdependência entre linguagem e pensamento. Sem linguagem não há transmissão
de pensamento. É, pois, através da linguagem que transmitimos nossos pensamentos
a outrem. E para que compreendamos o que é dito por outrem servimo-nos da arte
da interpretação, ou hermenêutica.
E como se exerce esta arte?
Antes de tudo é necessário entender a dinâmica da linguagem como uma constante
criação e evolução através da História, é um fazer-se. A língua portuguesa
falada hoje, por exemplo, é muito diferente da falada em seus primórdios. Tornou-se
muito mais rica, e muitos termos falados outrora foram abandonados e outros
novos foram incorporados.
Só para ilustrar brevemente, a
palavra você é proveniente de ‘vossa mercê’; era, no português antigo, usado
para tratamento de pessoas ilustres. O termo sofreu uma corruptela passando
para ‘vosmecê’ e hoje temos você. Só que nos tempos atuais não é mais usado
como pronome pessoal de tratamento para ilustres; pelo contrário, é usado na
terceira pessoa e pode ser usado no lugar de tu; tornou-se até, a meu ver, a
ser mais usado que ‘tu’ e mais bonito e suave; a não ser no sul do Brasil,
principalmente os gaúchos que preferem o ‘tu’, mas errando, por vezes, a
conjugação: em vez de ‘tu vais’ dizem ‘tu vai’...
A hermenêutica, portanto, é a
ciência da interpretação. Para podermos apreender os pensamentos do que foi
escrito em tempos remotos, por exemplo, devemos ter em mente duas coisas: o
sentido e o significado. Sentido e significado têm uma leve distinção. Sentido
(de sens) é sempre aquilo que se vivencia, ou sentimos, como agentes que somos
no mundo. E para dar significação às nossas vivências temos de usar signos que
são a linguagem; através da linguagem o sentido se dá em significação.
Tendo isso em mente, temos de
levar em conta a historicidade e o contexto do texto escrito. Qual a vivência
que foi experienciada pelo autor; quais os signos e a gramática vigentes na
linguagem da época, etc. Temos de considerar, outrossim, a historicidade ou a
temporalidade que é criadora, em que nada se repete como sendo o mesmo de
épocas anteriores, mas sempre criando fatos novos a partir do que foi
estabelecido no passado e com tendência a transformações futuras. Assim a
palavra ‘você’ está apoiada em ‘vossa mercê’ com tendência de passar para
simplesmente ‘cê’ que tanto já se usa em redes sociais.
Assim, ao lermos um texto
antigo e termos a correta compreensão ou apreensão do sentido e significado,
temos que revisitar o passado e atentando à evolução que a linguagem sofreu, e
interpretar com termos atuais o que se vivenciou no passado, mas que na
atualidade não há cabimento tal vivência em que a realidade se apresenta de
outro modo, com outras exigências no modo de viver e expressar-se.
Historicamente falando, toda
época tem e teve seu máximo de contribuição cultural perfazendo-se num futuro
indeterminado. Se Camões foi a expressão literária máxima da língua portuguesa,
não há como ter outra 'Lusíadas' na época atual, vivenciamos outros tempos e
não aquela de Camões de 1500...
Se fosse possível o Cristo de
2 mil anos atrás aparecer repentinamente em carne e osso entre nós, talvez ele
diria: 'não sou cristão à vossa maneira'; a vivência do cristianismo de hoje
não é o da época dele, adaptou-se, hoje, às vivências e contingências atuais,
com outros enfoques.
E mesmo podemos colocar em
dúvida se os termos da linguagem original dos evangelhos correspondem
adequadamente aos termos usados nas línguas atuais, como o português, por
exemplo, para saber o que foi dito e vivido no contexto da época, já que
Cristo, me parece, falava em aramaico e os evangelhos foram escritos em grego a
partir de 40 anos depois de sua morte.
Quer dizer, os evangelistas
tiveram que achar termos (signos) em grego para traduzir o sentido das palavras
aramaicas de Cristo. Usaram os termos certos em grego? Assim também podemos
questionar se ao longo dos 2 mil anos não houve desvio de interpretação da
linguagem evangelista para outros idiomas.
Assim, pela hermenêutica
podemos nos inteirar do que foi vivenciado em épocas anteriores, interpretando
com autenticidade os termos da linguagem escrita dessas épocas e tirar proveito
dessas vivências enriquecendo as nossas vivências atuais, não as mesmas
daquelas do passado remoto, pois nada é repetível no tempo, sempre estamos às
voltas com o novo e irrepetível.
Se saudade tivermos do passado
é apenas um sentimento gostoso de distanciamento o qual gostaríamos de reviver,
mas impossível de se tornar viável porque o tempo é passamento e determina
novas vivências, e estas também ficarão no passado das quais também podemos ter
saudade.
Título e Texto: Valdemar Habitzreuter, 17-9-2016
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