Helena Matos
Quando a sala socialista rompeu num
aplauso após Mariana Mortágua ter defendido o seu modelo leninista de confisco,
estamos perante um facto que nos vai marcar no futuro: o PS deixou de ser
confiável.
“Temos
de perder a vergonha e ir buscar a quem está a acumular dinheiro”. Quando
Mariana Mortágua acabou de pronunciar esta frase “a
sala socialista rompeu num aplauso.” Repito, “rompeu num aplauso”.
E agora? A boçalidade de quem
olha para a sociedade numa perspetiva recoletora subjacente ao raciocínio de
Mariana Mortágua é evidente e nada tem de novo. Para a esquerda radical, de que
a deputada faz parte, a riqueza não se gera, caça-se. Em algum lado a
presa/riqueza há de estar: antes nacionalizava-se e ocupava-se. Agora taxa-se.
Alguma vez a esquerda radical concebeu outra forma de governo e de
financiamento que não passe pelo confisco? Primeiro dos banqueiros, dos
latifundiários, dos capitalistas, das multinacionais e dos grandes grupos
económicos que iam pagar a revolução, o socialismo à portuguesa, a aliança com
o Terceiro Mundo e os países não-alinhados… Depois, quando os banqueiros e os
capitalistas ficaram descapitalizados, os grandes grupos económicos sucumbiram
às mãos da incapacidade das comissões ditas de gestão e desapareceram o
Terceiro Mundo mais os países não-alinhados, já seriam apenas os ricos a pagar
agora não a revolução mas sim a crise. Havia sempre ricos.
Muito ricos. Lucros fabulosos… Agora já vamos
simplesmente em quem poupa. Ou, parafraseando Mariana Mortágua, em “quem está a
acumular dinheiro”. Mas será acumular muito ou pouco? Ou este ano incide-se em
quem acumulou muito e para o ano que vem ataca-se quem acumulou um pouco menos?
Afinal é a própria atitude burguesa do acumular para transmitir aos filhos – e
ser muito ou pouco não interessa – que está em causa. Qual o limite? Não há.
Porque cada vez vão precisar de mais dinheiro e cada vez ele será mais escasso.
Vão multiplicar-se os dias de manicómio como aquele em que de manhã nos é
anunciado um imposto para os “proprietários ricos” pelo BE, à tarde o PCP
declara que também tem uma proposta para outro imposto sobre o imobiliário e de
caminho, para que não nos falte nada, o PAN pretende obrigar a toque de multas
os proprietários a aceitar animais em casa e a CML discute a responsabilização
dos proprietários dos prédios afetados pelos graffitis. (A estes, não lhes
bastando já terem a sua propriedade desfigurada ainda vão passar a ter de
avisar rapidamente a autarquia do ocorrido cujos técnicos sabiamente decidirão
se se está perante um caso de arte urbana, que o proprietário ainda se arrisca
a ter de conservar, ou de vandalismo que acabará a ter de reparar).
Os únicos que se podem chocar
com o primarismo civilizacional das palavras da deputada Mariana Mortágua são
aqueles que se quiseram enganar. Que acreditaram e quiseram fazer acreditar que
o Louçã que fala com tanta assertividade nas televisões privadas e que agora
até põe gravata para ir ao Conselho de Estado, que a deputada Mortágua que até
tinha estudado em Londres mais a Catarina que é tão simpática… não tinham nada
a ver com aquela loucura de 1975 nem com outras loucuras acontecidas antes e
depois noutros lugares do mundo.
Ora, esquerda radical não mudou
nada. Simplesmente costumizou-se para televisão ver: os maoistas e trotsquistas
deixaram de ler Mao e Kadhafi e já não fazem protestos à porta dos festivais de
cinema e outros desfiles. Puseram laço, tornaram-se fashion e na
passadeira vermelha debitam contra a austeridade ou outro assunto que bate
sempre bem com as luzinhas, como os refugiados, a fome, a discriminação das
mulheres (no mundo cristão, naturalmente, porque quanto ao muçulmano o caso é
bem outro). Os estalinistas, para mais libertos do embaraço da URSS, organizam
festivais com rock como música de fundo para criticar a exploração dos
trabalhadores no regime capitalista…
Na verdade, como acontece com
os fanáticos de todos os tempos, eles são os donos das palavras e nunca são
confrontados com a barbárie implícita aos seus atos mas tão só com a bondade
das intenções que apregoam. Esta gente, cujas ideias só geraram pobreza,
totalitarismo e atraso, esta gente que nunca criou um posto de trabalho, que
vive do Estado e para controlar o Estado, goza, com a conivência de todos nós,
do direito a falar em nome de todos aqueles cujas vidas literalmente desgraçam.
Apresentar Arménio Carlos ou Jerónimo de Sousa como defensores dos
trabalhadores faz tanto sentido quanto aplaudir aquelas delegações unicamente
compostas por homens que a Arábia Saudita envia às conferências sobre os direitos
das mulheres. Não sei se na Arábia Saudita se acha normal o inaudito dessas
representações mas sei que aqui estes homens cujo único propósito é blindar os
privilégios da sua seita são todos os dias apresentados como representantes dos
desfavorecidos.
Logo não houve nada de novo
nas palavras de Mariana Mortágua. O que não quer dizer que naquela sala onde se
tratava do tema “as esquerdas e as desigualdades” (a desigualdade, para mais
pluralizada, vai ser o chavão dos próximos tempos) não tenha havido uma novidade.
Uma novidade com que teremos de aprender a lidar no futuro: a destruição do PS
enquanto partido democrático. Quando lemos que “a sala socialista rompeu num
aplauso” após Mariana Mortágua ter apresentado o seu modelo leninista de
sociedade, estamos perante um facto que nos vai marcar no futuro: o PS deixou
de ser confiável.
Quando Mariana Mortágua
declara “Temos de perder a vergonha” não fala de si mesma nem da sua gente, que
em matéria de ir buscar dinheiro onde ele existe nunca tiveram vergonha alguma.
Fala sim para o PS e só para o PS. Um PS que a extrema-esquerda acredita ter
tomado por dentro. Dir-me-ão que o PS pelo contrário almeja engolir a
extrema-esquerda. Mas essas são questões aritméticas que apenas aos próprios
dizem respeito. Politicamente o caso é bem outro e afeta-nos a todos: que
partido é este PS que rompe em aplausos após escutar uma proposta que até há
alguns anos indignaria os seus dirigentes?
Dir-se-á que as pessoas que
estavam naquela sala não representavam o PS. Que existe um PS que um dia quando
este delírio acabar explica a Mariana Mortágua que um governo de bem não vai
buscar dinheiro onde ele existe, antes propõe-se criar condições para que se
gere mais riqueza. Mas aí é que está a questão. Portugal está a pagar um preço
muito caro por ter deixado o PS colocar o contador a zeros em 2011. Sócrates
foi o que foi e os socialistas não só se calaram para lá do moralmente possível
como rompiam em aplausos de cada vez que ele anunciava mais um cheque-bebé
(onde andam esses cheques?), mais um TGV, mais não interessa o quê porque o que
interessava era o evento. Agora mantêm-se em silêncio perante o grotesco do que
se sabe sobre a vida de Sócrates mas não perdoam a Carlos Alexandre que faça o
seu dever, tal como não o perdoaram a Souto Moura. (Em Portugal, os juízes só
merecem respeito se não tocarem no PS. Aí levam e não levam pouco.)
Depois os socialistas fizeram de conta que não tinham sido eles a negociar o pedido de ajuda externa e andaram anos a gritar contra a troika como se a crise instalada no país tivesse sido uma criação de Passos Coelho. Agora, ao ouvirem Mariana Mortágua dizer-lhes para perderem a vergonha e abraçarem um modelo totalitário, romperam num aplauso. Um dia virá em que vão fazer de conta que não foi assim…
Sentados no poder, confortados
pelas sondagens e descontraídos pelo silenciamento das corporações do protesto
(momento norte-coreano esse de Mário Nogueira a manifestar o seu regozijo pelo
feliz início do ano escolar!) os socialistas não sabem quando vai chegar o futuro
– o momento em que o choque com a realidade se vai impor – mas querem acreditar
que vão poder ser os primeiros a lutar contra aquilo que eles mesmos
provocaram. Funcionou em 2011 e pode funcionar outra vez. Pois pode. E é
precisamente aí que entra a vergonha ou mais precisamente a falta dela. Quando
alguém perde a vergonha o problema maior não é dela mas sim dos outros. Ou de
um país.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
18-9-2016
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