terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Para todas as horas

Aparecido Raimundo de Souza

ANINHA LIGOU
para a amiga Eloísa e disse que precisava se avistar o mais rapidamente possível com ela. Uma dúvida cruel a atormentava e chegara, por conta, ao incômodo de lhe afetar o sossego e tirar o sono:
— Venha aqui em casa. Aproveite o clima desta tarde maravilhosa. Vou lhe esperar com um café reforçado. Pegue um Uber. Eu pago...
— OK. Estou indo.
— Vou lá na cozinha pedir à Terezinha para providenciar o nosso lanchinho.

Aninha passou a mão nos seus pertences, pediu um carro de aplicativo e, vinte minutos depois, estava sentada à farta mesa do café no apartamento luxuoso da sua melhor e única amiga, confidente íntima e, acima de qualquer suspeita, à quem contava todos os seus segredos, mesmo os mais inadmissíveis e cabeludos:
— E então, Aninha, o que foi desta vez?
— Encontrei um bilhete no bolso do paletó de meu marido! Acho que o Leopoldo está me traindo. Aquele safado tem uma amante, uma amante, Eloísa.

— Um bilhete, amiga?
— Na verdade, o terceiro, só esta semana. Se eu pego a vagabunda, eu mato, juro que mato...
— E o que ‘ele’ diz?
— ‘Ele’ quem, meu marido?
— Não, Aninha, os tais bilhetes...
— Estou tão furiosa, tão irritada, que dei para me atrapalhar. Pra você ter uma ideia, já me flagrei falando sozinha, discutindo com a geladeira...

Eloisa caiu numa estrondosa gargalhada:
— E ela respondeu?
— Amiga, você está me tirando? Fazendo hora com a minha desgraça numa hora tão imprópria?
— Claro que não, amiga. Só estou tentando descontrair a sua irritação. Continue, o que diziam os bilhetes?
— No primeiro, a sem vergonha escreveu: ‘Amor, eu te amo. Vamos nos ver no lugar de sempre?’. O segundo, esclarece a traição consumada: ‘meu gato, nosso chamego de ontem foi legal. Vamos repetir a façanha? Me liga’. O terceiro, dá conta de que sou uma estúpida, uma bocó. Resumindo: uma ‘otária’. A maldita me chamou de ‘otária’. E assinou assim: ‘Sua gatinha, E...’.

— E...?!
— É. A infeliz assinou com um ‘E’ e um coraçãozinho. A desnaturada deve se chamar Elisa, Eliane, Érica, Esther...
— Meu Deus, amiga, que safada! Acaso você desconfia de alguém?
— Sim e não. Para dizer a verdade, sim...
— De quem?!
— Olhe você mesma os bilhetinhos. Salvo melhor juízo, me parece, com a caligrafia da secretária dele, a Efigênia. É dela que estou com um monte de pulgas atrás das orelhas. Os dois escutadores de novelas, para ser mais exata.

Aninha abriu a sua Victor Valencia preta (falsificada) e, de dentro, tirou os bilhetinhos amassados encontrados no bolso do paletó do marido:
— Pode ser dela mesma, Aninha. Você não deixa de ter razão.
— Eloísa, você ainda tem aquele caderninho cheio de páginas com folhinhas coloridas iguais aos destas mensagens?
— Sim, amiga... Quero dizer, tinha...
— Ué! Que fim levou?

Eloísa, mais que depressa, desconversou:
— Joguei fora. Depois que arranjei um problema na minha mão direita... Ela deu para ficar dormente, assim sem mais nem menos e pior, a doer terrivelmente. Peguei a droga do caderninho e joguei no lixo. Veja você mesma. Nem segurar a caneca de café direito estou conseguindo. Se você soubesse como esta coisa doí... Minha vizinha aqui do lado, me disse que é artrite, ou artrose, sei lá...

— Credo, amiga! Não sabia. Que situação! Quanto aos bilhetinhos, o que acha que devo fazer?
— Deixa todos aqui comigo. Vou tentar apurar se as letras de uma de nossas amigas (as que costumam frequentar aqui em casa, nos encontros que nossos maridos e os delas, lógico promovem), batem, ou se assemelham com os garranchos destes papeizinhos.
— Que legal, minha amiga. Bem pensado. Você me faria este favor? Me ajudaria à chegar a identidade da despudorada?

— Com certeza que sim. Lembra que somos unha e carne e a nossa amizade, nestas horas, serve para ajudar no que for preciso. Asseguro a você que juntas, vamos desmascarar rapidinho quem poderá estar se encontrando com o Leopoldo. Deixa estar, ou não me chamo Eloísa.
— Mas nenhuma das esposas tem o nome começado com a letra ‘E’.
— Pode ser um despiste, amiga. Um disfarce. Pra não dar na pinta, entende? Juro a você que pego esta periguete seja lá quem for, com a boca na botija.

— E como fará, na prática?
— Minha ideia, a princípio é comparar as letras. E como farei isto? Pedindo a cada uma das companheiras que escrevam alguma coisa para mim...
— Para mim?
— Para eu. Inclusive, até você entrará no jogo. Terá de me escrever algo. Qualquer coisa. E prometa. A partir de agora, não falará nada pra ninguém. Bico calado. Te juro que mais cedo do que você pensa, pegarei o sem noção do Leopoldo. ‘Ele’ que me aguarde.
— ‘Ele’?!

— Sim amiga, ‘ele...’.
— Não estou conseguindo acompanhar a sua cabeça...
— Como não? Estou sendo bastante específica.
— Mesmo assim... O que quero dizer é que nem o seu raciocínio eu captei direito. Desenhe. Você se referiu a ‘ele’ e não à ‘eles’.
— Eu disse ‘ele’?— Sim, com todas as letras: ‘ELE’.
— Você deve ter escutado de forma errada. Eu disse ‘Eles’, amiga, ‘Eles’, os bilhetinhos, os bilhetinhos...

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Salvador, na Bahia., 16-2-2021

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O fescenino do caráter ruim 
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