sábado, 2 de outubro de 2021

Mascarada institucional

Henrique Pereira dos Santos

É raro escrever sobre máscaras, vacinas, remédios, testes e coisas que tais.

A razão é simples: são assuntos técnicos demais para o que eu sei, de maneira que as minhas opiniões são irrelevantes (nos outros assuntos, provavelmente, também, mas o que conta, para eu decidir escrever alguma coisa, não é as coisas serem assim ou assado, mas eu achar que são assim ou assado e nos assuntos que listei eu não acho grande coisa).

Este post também não é sobre máscaras, mas sobre as instituições que decidem sobre as máscaras.


Deixemos de lado o argumento dos que estão contra a ciência e outros argumentos de autoridade semelhantes e olhemos para a situação atual.

Neste momento não é obrigatório usar máscaras numa discoteca, mas é num estádio de futebol ao ar livre, num cinema ou numa sala de aula. Da mesma forma, não é obrigatório usar máscara enquanto se faz exercício num ginásio, mas é enquanto se circula no ginásio.

Como é evidente, estas diferenças não se devem a qualquer ciência sobre a eficácia das máscaras, mas à mera ponderação de fatores sociais e econômicos das decisões tomadas, como aliás deveria ter sido claro para todos, desde o princípio.

Usar ou não máscara não é um sinal de amor ou desamor pela ciência, é o resultado de uma ponderação de fatores que todos fazemos a propósito de tudo, todos os dias, incluindo a percepção que cada um de nós tem sobre o que dizem diferentes fontes de informação científica sobre o uso de máscaras no controlo de infecções respiratórias muito contagiosas.

A ciência não diz nada sobre assunto nenhum, a ciência é o que em cada momento resulta da interpretação do conjunto de fontes de informação que usam o método científico para tentar responder às perguntas e angústias dos diferentes investigadores.

Quem explicou a razão pela qual não é obrigatório o uso de máscaras numa discoteca foi António Costa, cuja classificação como cientista só poderia ser manifestamente irónica, e explicou-o racional e ponderadamente: seria uma decisão tão evidentemente inútil que mais valia não a tomar.

O custo político está na decisão de abrir as discotecas, e, portanto, não obrigar a usar máscara é politicamente irrelevante e sempre se dá um rebuçado ao pessoal que vai para a noite, que ainda são uns milhares de votos.

Já no cinema, digo eu, mandar usar máscaras é menos irracional: aquilo está tudo escuro que quem quiser, na verdade, não usa, sem que isso cause qualquer frisson social.

Nos jogos de futebol, ao ar livre, o pessoal grita muito, de maneira que é melhor mandar usar máscaras.

É evidente que ninguém vai ver um policial a atravessar meia bancada para multar um tipo que no meio de uma claque está sem máscara, portanto é daquelas decisões que ficam bem no jornal, mas toda a gente sabe que são treta, politicamente não aquece nem arrefece e socialmente é irrelevante.

A decisão contrária, de não obrigar a usar máscara, embora fosse mais ou menos igual para quem está a ver o jogo no estádio (quem quer, usa, quem não quer, não usa) teria algum custo político no grupo das pessoas que acham que as medidas de contenção de uma epidemia servem para controlar a evolução da doença e não para minimizar os seus efeitos sociais negativos.

Nas escolas, depois da Direção Geral de Saúde e mais uma equivalente qualquer do Ministério da Educação terem andado aos papéis, o focus group deve ter pendido para o lado dos pais que ainda não perceberam que os filhos não são afetados pela doença, de maneira geral, e que os adultos que com eles contactam estão vacinados. Como estão convencidos de que as medidas a tomar devem ter como objetivo evitar contágios, e não a mera contenção dos efeitos negativos da doença, continuam a perseguir a utopia do risco zero para os seus filhos.

Vai daí, primeiro as máscaras não seriam obrigatórias nos recreios, depois afinal passaram a ser obrigatórias nos recreios até que alguém no governo se lembrou de explicar que não ser obrigatório usar máscaras em discotecas e ser ao ar livre nas escolas, talvez fosse demais para quando fosse preciso que as pessoas confiassem nas instituições e na razoabilidade das medidas a tomar em futuros surtos do que quer que seja, esta ou outra doença.

Ora era mesmo aqui que queria chegar depois desta conversa toda.

Não fazemos a menor ideia de quem são as pessoas concretas que tomam a decisão de obrigar a usar máscara na escola (ou vacinar crianças), não fazemos a menor ideia de como essas pessoas concretas tomam estas decisões, com que base, ponderando que fatores, usando que processos de decisão etc.

E isso, por mais voltas que se queiram dar, é um bom retrato da forma como as instituições funcionam no país e a raiz de toda a desconfiança institucional das pessoas comuns em relação às instituições.

Essa desconfiança institucional não deve ser confundida com a falta de respeito pela autoridade, no país existe mesmo muito respeito pela autoridade e o poder, mas esse respeito é filho do medo, da modéstia e da incerteza sobre as consequências pessoais que podem advir do confronto com a autoridade, não é filho da voluntária submissão à vontade da maioria expressa por processos institucionais abertos, racionais e respeitados.

Graça Freitas até pode ser muito popular, e ter uma enorme corte de pessoas que admiram o seu desempenho durante a epidemia, mas não é por ser quem é e ter demonstrado um genuíno esforço de decidir bem e decentemente num contexto de elevada incerteza, é apenas por ocupar o lugar que ocupa e ser a detentora do poder num momento em que as pessoas precisaram de poder contar com as saias da mãe para se sentirem protegidas.

A prazo, é uma tragédia para o país o nível de corrosão institucional instalado.

Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas, 2-10-2021

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