É preciso ser heroico para defender a
verdade quando todos decidiram que a verdade é mentira
Pedro Henrique Alves
“A democracia é a pior forma de governo, à exceção de todos os outros já tentados”, teria dito o gigante e polêmico primeiro-ministro britânico Winston Churchill, na Câmara dos Comuns, em 11 de novembro de 1947. Para Aristóteles, por sua vez, a democracia é um mau governo, pois a autoridade que o povo tem constantemente é exercida em detrimento dele mesmo — e, cá entre nós, quem pode dizer ser 100% mentira o que o estadista disse?
A morte de Espártaco, de Hermann Vogel, 1882 |
Filha da filosofia grega com a
cultura ocidental, a democracia moderna traz em seu bojo três valores
primordiais: a liberdade individual, a tolerância social e o império das leis.
Liberdade para falar o que se pensa, acreditar no que quer, ir para qualquer
lugar — temperada com a mentalidade tolerante de suportar e até mesmo abrir
espaço para ideias contrárias —, colocando em prática aquilo que o filósofo
americano Jonah Goldberg chamou de “milagre ocidental”.
Foi a democracia — maturada em
mil caldeirões argumentativos — que gestou a mentalidade social que hoje
possibilita a existência de uma sociedade em que católicos e protestantes,
homens e mulheres, ricos e pobres, héteros e gays, progressistas e
conservadores congreguem, produzam e batalhem lado a lado em busca de um país
mais bem organizado. Não há outro exemplo na história humana em que pessoas que
pensam, creem e defendam pontos de vista profundamente conflitantes tenham
habitado os mesmos bares, as mesmas escolas e praças, sentados para tomar
cerveja depois do trabalho, gritando e se abraçando em estádios de futebol após
um gol. Muito menos que eles, unidos, conscientemente ou não, tenham prosperado
juntos em busca de um bem comum, de avanços e melhorias. Parece milagre mesmo.
Mas devemos deixar claro que a democracia está fincada em um paradoxo absurdo entre necessidade de liberdade e necessidade de ordem. Ao mesmo tempo que é o regime político que mais deu liberdade, que unido embrionariamente ao livre mercado mais gestou prosperidade, ofertou tolerância política e religiosa, é simultaneamente o que mais possibilitou o livre advento de idiotas, alienados, déspotas, criminosos, religiosos e sindicalistas fanáticos, todos eles com acesso livre aos microfones políticos e às ágoras modernas — as redes sociais. A mesma democracia que oferece as janelas abertas ao frescor do avanço econômico e científico, é também a que não impede o salto da ordem social quando um louco politicamente sedutor ganha proeminência.
E é isso mesmo. Churchill
estava certo quando disse que a democracia nem de longe é perfeita, mas que
ainda assim era a melhor das opções. O fato é que não há como trancar as
janelas sociais sem ferir a liberdade e a tolerância dos bons e dos sinceros
que apenas desejam ares frescos. Cabe, no máximo, punir os transgressores das
regras públicas, cercar de avisos e leis os impulsos e atos que maltratam o
terreno comum da sociedade. Mas para por aí. A democracia parte do pressuposto
da real liberdade dos indivíduos — e isso não é negociável. Por ser
“demasiadamente humana”, também está inevitavelmente embebida das falhas
inerentes aos homens.
Daniel
Silveira foi proibido de dar entrevistas. Por quê? Porque Alexandre de Moraes
não quer
Dessa forma, é bom lembrar a
todos que a democracia não é uma força vital inatingível pelas tolices dos
tiranos, muito menos uma utopia socialista perfeitamente esculpida pela
“ciência” militante. Da mesma maneira que a democracia foi construída, ela pode
ser destruída. Está suspensa por uma fina linha de sensatez, assegurada pela
sempre madura mentalidade comum, por instituições sintéticas de Estado e pela
coragem de alguns chamados a defendê-la em seus inúmeros fronts. E
é disso que se trata tudo, os bárbaros voltaram, e agora não há invasões, eles
já estão aqui. A destruição dos pilares da democracia já está em curso, basta
olhar com atenção e retirar a trave ideológica dos olhos.
Os bárbaros voltaram em suas
novas peles, em renovados invólucros sociais. A crescente onda de autoritarismo
promovida pelo Supremo Tribunal Federal talvez seja o melhor exemplo disso.
Estamos naquele sagrado limiar da análise social, o momento exato da
transfiguração das impressões críticas em encarnações factíveis. As pedras
estão se vertendo em Golem. Não podemos mais enfeitar os atos dos togados
brasileiros com frases que buscam abrandar a crítica merecida. Dizer que o STF
“flerta com o autoritarismo” não é mais ser prudente: é um erro. Um tribunal
que prende jornalistas e deputados, cala grupos sociais inteiros, cria regras
instantâneas a fim de silenciar críticas e opositores, que assume publicamente
cartilhas ideológicas, que tem ministros que falam como chefes de Estado, um
tribunal camaleão que deliberadamente assume funções de poderes republicanos
independentes. Não se trata de “flertes autoritários”, mas de uma Corte que
decidiu abertamente ser despótica, que vestiu deliberadamente as luvas do
cesarismo.
Daniel Silveira — depois de
ser liberto de uma prisão ilegal — foi proibido de dar entrevistas. Por quê?
Porque Alexandre de Moraes não quer. Até o momento não se viu materialidade
alguma na prisão de Oswaldo Eustáquio. Também não se enxergou motivo para
prender Allan dos Santos, embora seu pedido de extradição tenha sido expedido.
Até o momento, a única possível explicação para os atos do Supremo Tribunal jaz
na tirania da Corte.
Para que a democracia exista,
precisamos ter uma concordância mínima de valores. Esquerda e direita,
progressistas e conservadores que não habitam os extremos ditatoriais devem
resguardar e defender as bases que possibilitam uma sociedade livre e tolerante.
Os ataques às liberdades individuais e às estruturas jurídicas, antes mesmo de
assumirem faces e cores ideológicas, devem ser rechaçados por serem ataques aos
valores comuns da democracia.
As liberdades cassadas de
Daniel Silveira e Allan dos Santos, mesmo que você os odeie, ferem também a sua
liberdade. Não se conhece uma ditadura que tenha silenciado somente os
opositores, bem como nunca se viu a gana autoritária de um homem ser plenamente
saciada com a repressão de apenas alguns desafetos. O despotismo é uma porta
que, depois de aberta, não se fecha de forma pacífica.
Talvez a pergunta fundamental
tenha sido feita pela historiadora americana Gertrude Himmelfarb em seu
livro Ao Sondar o Abismo: Pensamentos Intempestivos sobre Cultura e
Sociedade: “Como uma sociedade que louva as virtudes da liberdade, da
individualidade, da variedade e da tolerância se sustenta quando tais virtudes,
levadas ao extremo, ameaçam subverter aquela mesma sociedade liberal e, com
isso, as próprias virtudes”?
A resposta está em uma
constante vigilância temperada por um pontual heroísmo de cada um. É preciso
ser heroico para defender a verdade quando todos decidiram que a verdade é
mentira. É preciso ser nobre para defender os valores corretos quando estamos
cercados de tribos que defendem a tirania como condição da liberdade.
Arremata Himmelfarb sobre o
assunto:
“É necessário um grande
esforço de vontade e inteligência para o indivíduo decidir por si mesmo que
algo é imoral, e para agir segundo essa crença, quando a lei e as instituições
do Estado consideram a coisa permissível e até legal. É preciso um esforço
ainda maior dos pais para inculcar tal crença nos filhos, e persuadi-los a agir
com base nisso, quando as escolas públicas e as autoridades do governo
contradizem tal crença e autorizam o comportamento que a viola”.
O escritor inglês G. K.
Chesterton dizia que a história costumava ser sempre salva por um punhado de
pessoas comuns que insistiam em não se adequar às sandices de seu tempo.
Em O Homem Eterno, ele afirmou que é muito mais fácil ser galho
seco na correnteza do que nadar contra ela a fim de defender valores. De fato,
é preciso honra e brio para confrontar os bárbaros, quer eles vistam peles de
caças ou togas pretas. Não consta nas bibliotecas que as benesses da civilização
tenham sido construídas por covardes. Devemos decidir logo se somos galhos ou
nadadores.
Título e Texto: Pedro
Henrique Alves, revista OESTE, nº 89, 3-12-2021
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