Gazeta do Povo
Na semana passada, o Ministério da Saúde (MS) abriu uma consulta pública sobre o tratamento precoce contra a Covid-19, após divergências internas sobre diretrizes contra o uso desse tipo de tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS) elaboradas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec). No fim de outubro, uma votação dentro do ministério sobre essas diretrizes acabou empatada em seis a seis, o que motivou a consulta pública.
Não só os órgãos colegiados
votaram contra o tratamento precoce, mas também duas secretarias do ministério
– a Secretaria de Vigilância em Saúde e a Secretaria de Ciência, Tecnologia,
Inovação e Insumos Estratégicos –, cujos chefes são nomeados pelo próprio
Executivo. O fato escancara uma vez mais os conflitos internos e a dificuldade
do governo Bolsonaro de fazer suas visões prevalecerem dentro do Ministério da
Saúde.
Em junho do ano passado, por
exemplo, o Ministério
da Saúde publicou uma nota técnica orientando que se facilitasse o acesso a
métodos contraceptivos durante a pandemia. A nota foi revogada após pressão
popular, e os responsáveis foram exonerados.
Fontes ouvidas pela Gazeta do
Povo - sob condição de anonimato - dizem que o aparelhamento do ministério,
resultante de 14 anos de gestão do PT, é uma realidade evidente. Mesmo com
servidores alinhados ao governo atual em cargos de chefia, a pasta ainda é
dominada, no baixo escalão, pelo petismo.
Não só a herança do PT, mas a
dificuldade de encontrar pessoas alinhadas ao atual governo com conhecimento
técnico suficiente para preencher cargos acaba impossibilitando uma mudança
mais profunda no quadro de servidores, dizem as fontes.
Como
o PT aparelhou o Ministério da Saúde
Nos 14 anos de gestão do PT no
Ministério da Saúde, algumas pautas progressistas como a legalização do aborto
chegaram a ser defendidas abertamente – o ex-ministro José Gomes Temporão, por
exemplo, chamava o aborto de “tendência mundial” e “questão de saúde pública”.
A principal transformação promovida pelo partido, no entanto, foi silenciosa.
“O PT pegava gente militante
do partido, quadro técnico, gente de universidade, e pagava bolsa para esse
pessoal ficar no Ministério da Saúde. Esse pessoal ficava trabalhando no
Ministério da Saúde como bolsista nas secretarias. Depois, abriam concurso
interno e botavam esse pessoal para dentro, e esse pessoal virava servidor do
ministério”, afirma uma fonte.
O foco do PT para criar o aparelhamento foram os cargos de baixo escalão. “Desde o governo Temer, esse pessoal vem trabalhando internamente para quebrar e boicotar qualquer política que seja contrária às políticas em que eles vinham trabalhando na época do PT. Quando vem o Bolsonaro, a guerra fica mais aflorada”, acrescenta.
Segundo a mesma fonte, o
ex-ministro Luiz Henrique Mandetta nunca foi alinhado a Bolsonaro e chamava o
presidente de “louco” mesmo antes dos conflitos públicos que os dois
protagonizaram durante a pandemia. Servidores alinhados com o presidente eram
alvo de boicote do ministro. “Apesar de ele ser ministro do Bolsonaro, ele se
colocava como uma entidade à parte”, diz.
Em 2020, uma das principais
polêmicas que evidenciaram o racha dentro do Ministério da Saúde foi a nota
pública sobre o tratamento precoce contra a Covid-19. Primeiro, a nota foi
boicotada internamente; mais tarde, o racha ficou publicamente escancarado.
A saída de Mandetta não
resolveu os conflitos. “O problema é que todos os ministros que sucederam ao
Mandetta, inclusive o atual, quando eles chegaram ao ministério, encontraram
uma máquina de servidores que têm obediência a um partido, o PT. Dentro do que
eles conseguem fazer, eles boicotam tudo.”
A estratégia do PT de lotear
os cargos deverá ter impacto duradouro dentro do ministério. E, com o
enxugamento dos concursos públicos, promovido pelo próprio governo Bolsonaro, é
provável que a mudança no perfil dos servidores se torne ainda mais lenta.
A percepção dentro do Ministério
da Saúde é de que o trabalho feito nos últimos anos para imprimir um viés
conservador nos atos da pasta – especialmente por meio de notas técnicas e
portarias alinhadas com o governo – não foi acompanhado por um esforço paralelo
de parlamentares conservadores no Legislativo. Por isso, a tendência é de que
todos esses atos se percam caso Bolsonaro não seja reeleito. “No primeiro dia
que entrar um governo de esquerda, as portarias vão todas cair”, diz uma fonte.
Em
vez de ficar gritando e berrando, direita tem que se qualificar, diz servidor
Em alguns casos, os boicotes e
desobediências de servidores pouco alinhados ao atual governo são punidos com
exonerações. Mas, por diferentes motivos, isso nem sempre acontece.
Uma das razões, segundo uma
fonte do Ministério da Saúde ouvida pela Gazeta do Povo, é a falta de pulso
firme de alguns dos gestores, que demonstram “incompetência em pacificar seus
funcionários”.
Mas o principal motivo,
segundo essa mesma fonte, é a falta de pessoas alinhadas ao governo e
preparadas para ocupar os cargos no lugar de esquerdistas.
“A direita não tem quadros
acadêmicos. A direita fica falando mal de universidade, só que os doutorados e
mestrados estão nas universidades. As pessoas, em vez de ficarem gritando e
berrando, deveriam se qualificar. Fazer mestrado e doutorado para ocupar os
cargos”, diz.
Entre aqueles que têm a
qualificação, muitos costumam recusar convites. “Os poucos que podem não
querem, porque querem ganhar dinheiro, ou permanecer em seus locais, com qualidade
de vida”, diz a fonte.
Ao mesmo tempo em que há,
entre conservadores vinculados à pasta, uma percepção de apatia da direita,
cresce entre algumas lideranças conservadoras de fora do governo uma visão
crítica sobre o Ministério da Saúde em algumas pautas essenciais, como a defesa
da vida.
Essa insatisfação costuma ser
ecoada nas redes sociais por influenciadores da direita que enxergam o
Ministério da Saúde como um foco do esquerdismo dentro do governo Bolsonaro.
Outros órgãos do governo federal são vistos como alvos de aparelhamento
ideológico da esquerda, mas a pasta chefiada por Marcelo Queiroga tem sido um
dos alvos mais frequentes.
Na semana passada, o Instituto
Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), que é pró-vida, entrou com uma ação
civil pública contra o Ministério da Saúde, alegando que a pasta não estaria
usando seu poder de polícia em relação à prática do teleaborto. Thiago Vieira,
presidente do IBDR, elogia as notas técnicas publicadas pelo ministério em
relação ao assunto, mas diz que não entende o motivo de a pasta ainda não ter
usado o poder de polícia do governo federal para evitar a prática.
“O Ministério da Saúde já fez
bastante. Houve notas de orientação, notas técnicas, dizendo que o teleaborto é
ilegal. Se fosse outro governo, teria notas técnicas dizendo que o teleaborto é
legal. Houve vários movimentos do Ministério da Saúde. O que
faltou? Faltou o poder de polícia. Faltou dizer: ‘Olha, nós emitimos nota
técnica e você continua fazendo… Nós vamos te prender’. Por que o Ministério da
Saúde não exerceu o poder de polícia do governo federal? Não sei. Por isso
nós entramos com a ação”, explica.
Sobre as alegações de Vieira,
o Ministério da Saúde explica à Gazeta do Povo que não tem poder de polícia e
que ainda não foi notificado sobre a ação do IBDR.
Acacio Miranda, especialista
em Direito Penal e Constitucional, diz que os ministérios têm, sim, poder de
polícia, que não deve ser confundido com o poder da polícia relacionado à
segurança pública, previsto no artigo 144 da Constituição. O poder de polícia,
no caso, pode ser exercido na prática com a fiscalização e, em alguns casos, a
aplicação de sanções.
"O conceito de poder de polícia decorre do Código Tributário Nacional e corresponde à capacidade de todos os órgãos administrativos de agirem de forma a fazerem valer os seus entendimentos. O ministério e outros órgãos da administração pública têm poder de polícia", diz Miranda.
O trecho do Código Tributário
Nacional citado pelo jurista define o poder de polícia como "atividade da
administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou
liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse
público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina
da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de
concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao
respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos".
Questionado sobre este
entendimento da lei, o Ministério da Saúde respondeu à Gazeta do Povo:
"Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração de políticas públicas de
saúde".
Título e Texto: Gazeta
do Povo, 28-11-2021, 14h09
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