terça-feira, 11 de abril de 2023

Crimeia

Luís Naves

Qualquer interpretação sobre a guerra da Ucrânia que não acompanhe a visão dominante dos meios de comunicação é recebida com intolerância, mas vamos lá tentar sair um bocadinho da lenda. A Ucrânia arrisca-se a ser um estado falhado ou um protetorado euro-americano que levará 40 anos a sair da pobreza. Em abril do ano passado, houve uma hipótese de paz desigual, mas pressões ocidentais acabaram com o processo. Isto, por exemplo, ainda não está explicado. Entretanto, morreram pelo menos outras cem mil pessoas. O conflito terminará provavelmente num armistício segundo o modelo coreano, com uma fronteira mais ou menos igual à que se negociava há um ano, mas é difícil escrever estas coisas sem receber insultos.

A Rússia não pode abdicar da Crimeia nem retirar o apoio aos russófonos separatistas. Esta é uma questão histórica complexa, (há muita literatura, mas quem estiver interessado deve ler isto). A Crimeia está empapada de sangue russo derramado ao longo de três séculos. Não há nenhum líder do Kremlin que possa abdicar daquele território, sobretudo entregue de bandeja aos Estados Unidos. É como perguntar em Washington que interesses vitais da América podem ser cedidos à China (Florida, Porto Rico, o Panamá?). 

No início do conflito, o presidente Biden foi claro: o objetivo do Ocidente é mudar o regime do Kremlin. Outros dirigentes de topo têm afirmado que a intenção é desmembrar a Rússia e criar uma confederação domesticada que sirva para cercar a China (explicado aqui). A estratégia do urso de circo parece ter falhado. O Kremlin não ruiu, as sanções tiveram impacto limitado e a qualidade dos armamentos fornecidos chegou aos seus limites. Se o arsenal à disposição dos ucranianos subir de patamar, há risco de uso de armas nucleares. 

Quando entramos nas subtilezas, o assunto torna-se ainda mais complicado. Antes da invasão russa, o exército ucraniano estava a ser armado e a intenção era expandir a NATO, colocando a fronteira da aliança a escassos 400 quilómetros de Moscovo. Em Março de 2021, o presidente Zelensky da Ucrânia assinou um decreto a ordenar ao seu exército que recuperasse os territórios perdidos (Crimeia e repúblicas separatistas); em Novembro de 2021, houve um acordo com os Estados Unidos de apoio militar, onde se dizia que a Crimeia "jamais" seria russa. Em 2014, ocorrera a chamada "revolução de Maidan" que foi, na realidade, o derrube de um governo eleito, no âmbito de um conflito antigo entre nacionalistas e pró-russos. Na argumentação a preto e branco, é geralmente omitido que existia uma guerra civil na Ucrânia desde essa data e que o governo bombardeava a sua própria população.

A ideia de um regime democrático exemplar é um mito: companhias ocidentais estavam num processo de compra de terras (as mais férteis da Europa), e havia na Ucrânia muitos nostálgicos do nacionalismo de Stepan Bandera, a Ucrânia para os ucranianos. Isto significa apenas metade da população de 1991 (agora talvez dois terços), o resto emigra ou aceita. Escrever estas coisas é hoje equivalente a ser comunista e merece imediata conotação com os reacionários de Moscovo.

Não se pode escrever que em 2022 o maior partido da oposição foi proibido na Ucrânia, televisões russófonas foram encerradas, que a igreja ortodoxa tradicional (dependente do patriarcado de Moscovo) é perseguida sem luvas, como são destruídos os livros em russo. Também não se pode dizer que os serviços secretos ucranianos prendem meia dúzia de pessoas pordia (por dia!) acusadas de "colaboracionismo" ou de "espionagem", para não falar do recrutamento forçado ou da desmoralização dos soldados enviados para o talho do Donbass. 

Em Moscovo, este é um conflito existencial: em caso de derrota, o império será desmembrado, por isso a derrota não é um cenário. A Rússia vai separar-se do Ocidente e os europeus perdem acesso à energia, fertilizantes, comida e minerais baratos. O comércio será limitado. O gasoduto que levava gás natural a preços ultracompetitivos da Rússia para a Alemanha pelo Báltico foi destruído à bomba. A Europa sai de tudo isto dividida e humilhada e a Ucrânia é o campo de batalha entre dois impérios.

Título, Imagem e Texto: Luís Naves, Delito de Opinião, 11-4-2023

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