A pergunta fundamental do Brasil começa a
ser respondida: por que a esquerda ‘permitiu’ o 8 de janeiro, mas morre de medo
de investigá-lo
Flavio Morgenstern
Podemos farejar a resposta
lembrando que a esquerda, desde pelo menos 2020, usa a invasão do Capitólio
americano como modelo para sua política repressiva. E que a narrativa de
enfrentar “golpistas” lhe rendeu enorme aumento de poder.
O próprio presidente americano
Joe Biden não cansa de repetir que o 6 de janeiro de 2020 americano, marcado
pela invasão do Capitólio, é “a maior ameaça à democracia desde a Guerra Civil”.
O jornalista Glenn Greenwald,
hoje residente no Rio de Janeiro, com nítida preferência pela esquerda (seu
marido, David Miranda, era deputado pelo Psol), perguntou em uma thread no
Twitter: “Pior do que o 11 de setembro? Ou Pearl Harbor?”
Or Pearl Harbor?
— Glenn Greenwald (@ggreenwald) April 29, 2021
Na continuação da thread,
Greenwald parece indicar a resposta perfeita à pergunta que incomoda o Brasil:
por que a esquerda permitiu o 8 de janeiro de 2023 (a versão
brasileira do 6 de janeiro de 2020)? E por que agora teme investigá-lo?
Glenn Greenwald citou ações do governo americano completamente ditatoriais, feitas em resposta a atentados: “E o desmantelamento das liberdades civis em nome da Guerra Fria e da Guerra ao Terror? Ou o programa de vigilância em massa implementado secretamente e ilegalmente pela NSA [Agência de Segurança Nacional americana] visando cidadãos americanos?”
How about the War on Drugs, mass incarceration and Jim Crow? Were those worse "attacks on democracy" than the 3-hour Capitol riot on Jan. 6?
— Glenn Greenwald (@ggreenwald) April 29, 2021
The assassination of JFK? The interference in domestic politics by the CIA? The list of worse attacks than Jan. 6 is endless.
Greenwald refere-se, entre outras coisas, ao programa de “monitoramento” (eufemismo para espionagem) que o governo americano promoveu vasculhando a privacidade de cidadãos americanos a partir do atentado de 11 de setembro de 2001. O programa foi implantado principalmente a partir do Patriot Act de George W. Bush, supostamente em resposta ao 11 de setembro e aos atentados envolvendo anthrax.
O Patriot Act tinha
como principal objetivo aumentar desproporcionalmente os mecanismos de
espionagem americana sem inspeção, podendo grampear telefones, inclusive
internacionalmente, facilitar a troca de informações de inteligência entre
agências e expandir atividades que a administração possa chamar de “terroristas”.
Estas medidas foram chamadas de “política fascista” pelo filósofo conservador
Olavo de Carvalho. O aparato de espionagem foi ainda aprofundado nos anos
Obama, criticado por Trump, e voltou 20 vezes pior com Biden, sempre clamando
contra os “antidemocráticos” do 6 de janeiro.
Não por acaso, exatamente
essas mesmas medidas, entendidas pela esquerda e direita como ditatoriais,
vêm sendo tomadas no Brasil desde que se aprendeu a repetir sobre fake
news como o maior problema do mundo (conceito inexistente antes de ser
inventado pela revista Atlantic em dezembro de 2016), a falar
em “milícias bolsonaristas”, em “hordas digitais”, em “gabinete do ódio” e
“discurso de ódio”. Milhões de extremistas só são combatidos com medidas
extremíssimas.
Algo que era impensável na
época da ditadura militar (o Leitmotiv da esquerda) hoje é
tratado com extrema naturalidade pela mídia: quebras de sigilo, buscas e
apreensões e diversos mecanismos para que políticos e burocratas tenham acesso
à privacidade completa das pessoas. Inclusive jornalistas.
A mídia, ao invés de prezar
pela liberdade das pessoas diante do autoritarismo — ou totalitarismo —,
tornou-se comparsa, com o sem-número de “reportagens” baseadas no vazamento de
mensagens privadas.
Ditadura em nome da
democracia
Basta imaginar se o caso fosse
de que Bolsonaro está vasculhando mensagens privadas de jornalistas. Ou de que
Trump está usando o FBI para ter informações sobre seus adversários políticos
(ironia das ironias, Trump passou sua gestão às turras com o FBI, tendo sido
grampeado por eles, para evitar o abuso de poder).
Imagine-se um cenário bizarro
em que, digamos, Carla Zambelli ou Daniel Silveira sejam alçados ao STF, e
criem um inquérito secreto, no qual acusam, “investigam” (ou seja, quebram
sigilos e fazem buscas e apreensões atrás de mensagens privadas), julgam e são
as supostas vítimas de… críticas a eles.
Suponha-se que ilações
fantasiosas, e mesmo acusações sem fundamentos de deputados conservadores,
virem “provas”, e as informações sejam trocadas entre CPI, Ministério Público,
inquéritos secretos, TSE, STF, PGR, Coaf etc.
Troquemos a liberdade da
privacidade e cogitemos um mundo sem “discurso de ódio”, em que cada vez que
alguém diga algo como “Esse Bozo merecia levar um chute nas nozes” em uma
mensagem de WhatsApp, isto seja considerado “crime contra a democracia”,
“ameaça à integridade física”, “quadrilha extremista que visa abolir o Estado
democrático de Direito”.
Em nome da liberdade de
imprensa, consideremos que jornalistas que critiquem Bolsonaro, com beneplácito
de Silveira e Zambelli no STF, tenham seu sigilo telefônico e telemático
quebrados. Ponderemos que, durante as eleições, Zambelli e Silveira sejam
alçados ao TSE, e decidam votar por aumentar mais ainda seu próprio poder, e
instaurem censura prévia, proibindo a divulgação de documentários da esquerda.
Este cenário seria chamado de
“democracia em berço esplêndido”, ou seria tratado como uma tirania terrível e
sufocante? Não se pediria até apoio internacional contra a opressão paranoica
de Bozo, Zambelli e Silveira?
Bem, basta inverter os nomes e
posições políticas, e o cenário não será em praticamente nada diferente do
Brasil dos últimos anos.
Imitamos os americanos no
Patriot Act de Bush e seu aperfeiçoamento tecnológico após a invasão do Capitólio,
macaqueando até o princípio jurídico invocado, lá como cá: o Direito Penal do
Inimigo, tese do jurista alemão Günther Jakobs, que nega garantias legais
“normais” a inimigos do regime, como terroristas. Basta agora chamar
empresários que mandam um emoji no WhatsApp de “golpistas” e voilà! Virou
inimigo do regime. Juristas brasileiros preocupam-se com o uso e
abuso do Direito Penal do Inimigo para perseguir meros discordantes.
A CPI da Covid, por exemplo,
investigava a falta de oxigênio no Amazonas. Pela lei, não poderia investigar
nada, além disso. Mesmo assim, senadores como Omar Aziz, Randolfe Rodrigues,
Humberto Costa, Rogério Carvalho, Renan Calheiros e Alessandro Vieira fizeram
quebras de sigilo em todos os sites da direita da internet, além do assessor
Filipe Martins e do antropólogo Flavio Gordon.
A invasão inconstitucional
exigiu todas as mensagens privadas em todas as
redes sociais, todas as fotos de contatos, todos os e-mails,
todos os apps, cópia integral do iCloud (!) com todas as fotos privadas e
documentos da vida da pessoa, todas as geolocalizações, histórico de
navegadores e de buscas no Google, histórico de saúde e mais.
Em nome da democracia, a
votação, ao menos dos jornais, deu-se em menos de 3 minutos, utilizando-se de
sentenças com trechos idênticos e (como sói) nenhuma dita fake
news. Parlamentares como o deputado Fausto Pinato (PP-SP) e o senador
Fabiano Contarato (PT-ES) pediam novas investigações, e inclusão de jornalistas
nos inquéritos secretos no STF.
Depois foi a vez do TSE desmonetizar canais (o que não cabe em suas
funções constitucionais). Em plenas eleições, aumentou os próprios poderes e
admitiu praticar “censura prévia”, mas mesmo assim censurou um documentário que
nem estava pronto (“Quem mandou matar Bolsonaro”, da Brasil Paralelo), enquanto
um “documentário” afirmando que a facada em Bolsonaro seria “farsa” da esquerda
rodava a internet livre, leve e solto.
É a concretização da ditadura suprema: basta chamar seus inimigos de
“antidemocráticos” e destruir todo o Estado de Direito. Se a direita tivesse
realizado 10% disso, a ONU já teria pedido uma intervenção militar.
Claro que, para a “democracia
com mão de ferro” ser aceita, urge dizer que a democracia está em risco. Seja
por perfis de zoeira no Twitter, ou por perigosíssimas fake news que
são a desculpa perfeita para o Ministério da Verdade (que político não quer
poder censurar e chamar críticas de fake news?). E talvez por isso
precise de um 6 de janeiro americano, de um 8 de janeiro brasileiro, de um
incêndio do Reichstag para chamar de seu.
E aí entendemos a necessidade
de fazer com que gente simples — vários deles idosos que morrem de medo de
baderna e bandido — sejam tratados como as próprias reencarnações de Adolf
Hitler.
É uma hipótese para entender
por que aquelas pessoas, esgotadas psicologicamente após meses sob sol e chuva,
tenham sido estimuladas a entrar nos prédios da Praça dos Três Poderes pelos
próprios esquerdistas que tanto se diziam “ameaçados”, e sempre pedem leis de
controle de armas, de conversas privadas, de regulação da internet e de aumento
do seu próprio poder para “defender a democracia”. Talvez por isso tenham
oferecido água, indicado os caminhos para o 8 de janeiro ocorrer.
E a mídia estará o tempo todo repetindo sobre a necessidade de punir golpistas, prender extremistas, justificando inquéritos contra as “milícias digitais” e outros nomes exagerados para caminhoneiros e cozinheiras. Todo poder absoluto surge quando se enfrenta uma ameaça absoluta. O melhor de tudo é quando essa ameaça é, afinal, apenas uma narrativa para viver em constante estado de exceção — e podendo punir seus adversários políticos como se fossem nazistas.
Título e Texto: Flavio Morgenstern, Revista Oeste, 20-4-2023, 11h
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