Humberto Pinho da Silva
Quem não se recorda, com saudade, da velha casa
onde nasceu e se criou?
Casa velhinha, em que cada canto e recanto, se
revive amorosos retalhos dos tempos que já não são.
Nasci numa velhíssima casa de alforge, de três
alargados pisos, com mais de duzentos anos!
Havia, no rés-do-chão, alçapão que dava acesso a
lôbrega e sinistra cave, infestada de aracnídeos, que era o terror da
criançada, mormente do benjamim.
Recordo – como e recordo! Deus meu! – da ampla e
soturna sala de jantar, de paredes forradas a papel encarnado, recobertas de
baixos-relevos, aguarelas, pratos de faiança, e quadros de gravuras antigas. Em
duas sóbrias colunas de nobre madeira, repousavam delicadas estatuetas em gesso
patinado. Nas portas cobertas a esmalte branco, pendiam, das sanefas, pesados
reposteiros.
Tomávamos nela as refeições, mas apenas em dia
festivo ou quando havia visitas de cerimônia; ordinariamente tínhamos outra
salinha, mais acolhedora, para o trivial.
Lembro-me – como me lembro! – o espaçoso armário de portadas verdes, embutido, quase dissimulado, no vão da escada. Nas sólidas prateleiras, dormiam inúteis velharias, entre elas: balança de dois pratos, maciços globos coloridos de vidro, palmatória de latão, pautas de música da avó Sofia, garrafas de vinho do Porto, e antigos jornais relatando notáveis acontecimentos do passado.
Nesse antiquíssimo casarão, decorreu a minha nem
sempre feliz adolescência, cadenciada pelo embalador e dormente tiquetaque do
antigo relógio de pêndulo, que pertencera a minha bisavó Júlia.
Nessas rijas paredes de estuque e granito, decorreram aventuras e desventuras, e senti, com mágoa, paulatinamente, escorrer como areia fina entre dedos, sonhos idealizados, que não pude ou não soube concretizar. Em "Portugal Pequenino" Raul Brandão invoca o encanto das vetustas casas que passavam de geração a geração:
"Que linda casa quando vem dos pais que a
herdaram dos avós! Cada prego foi pregado para a eternidade. Mais tarde até na
velhice e ainda que corras mundo, todos os teus sonhos se passam sempre entre
aquelas paredes, e empurras as portas perras dando-lhes o jeito que lhes davas
em pequeno para as abrires..."
Camartelos, pás e picaretas, desventraram, sem dó,
a velhíssima casa da minha infância. Ficou-lhe o imponente esqueleto, mirando
altivamente as águas açodadas do Douro, e o casario acastelado da cidade da
Virgem.
É a triste sorte, neste tempo prosaico, das
vetustas residências do século XIX.
O encanto que recorda Raul Brandão, já não pode
sentir a geração do século XXI, porque foram desfiguradas, demudadas em
esquerdo – direito.
Jamais terão os jovens o prazer, o fascínio, de
viverem nessas velhas casas de outrora; algumas tinham jardinzinhos
aconchegantes, caramanchões coroados pelos robustos braços de contorcida
glicínia, que desabrochava ao raiar da primavera, toucadas de formosos e
olorosos cachos arroxeados,
Nessas vetustas casas, que eram dos avós, ecoavam
pelos taciturnos corredores, antigas vozes dos entes queridos, que já partiram.
Em cada quarto, em cada saleta, sentia-se reviver, a cada passo, os ancestrais
falecidos – bisavós, avós e pais.
Eram casas que tinham alma, que recordavam quem
éramos e de onde viemos.
Título e Texto: Humberto Pinho da Silva, abril
de 2023
Quando havia donas de casa a tempo inteiro
Quando apelei a sentimento nobre
Quando o analfabeto era mestre da língua
Seja gentil
Deixem os jovens escolherem a profissão
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