O que está acontecendo com o Setor do
Saneamento é uma ilustração de como os atores políticos podem destruir o valor
Brasil, ao desmontarem os arcabouços institucionais
Alberto Gallo
Tudo o que desejamos é
que nosso país possa se desenvolver em todo seu potencial com crescimento
econômico e social. Assim, num momento de novo governo, nossa torcida
é pelo sucesso das políticas públicas ora implantadas e
que possam ser coroadas de acertos e reflexos positivos para todo o povo
brasileiro. Diferente do olhar de uns que torciam pelo fracasso de programas do
passado, e que no extremo até celebravam de forma cretina, o número de mortes
pela Covid, como forma de fazer política. Era o famoso “quanto pior, melhor”.
Mas na democracia é
importante um diálogo aberto e respeitoso. Um debate de ideias e críticas,
e inclusive elogiando acertos e marcando pontos de atenção. Afinal, é exatamente
o processo político onde o povo escolhe um programa e propostas de ações
governamentais com alternância de poder, que chamamos de democracia. No Brasil
essa escolha acontece pelas urnas com a eleição do executivo, na figura de um
presidente, governadores e prefeitos, mas também pelo poder legislativo através
dos deputados, senadores e na esfera municipal, dos vereadores. Estas duas
instâncias, e juntamente com o poder judiciário, compõe o sistema proposto por
Rousseau para a partilha do poder do Estado em três poderes e assim evitarmos a
tirania. Cumpre observar que é muito bem-vinda essa alternância de visões
no governo. Ora uma visão mais liberal, sucedida por uma visão de Estado
mais centralizadora. Melhor seria se tivéssemos ciclos mais suaves e longos,
mas devemos entender a história que se desenrola no picadeiro, mesmo se alguns
atores centrais por vezes fazem movimentos estranhos e ocultos atrás das
cortinas, movimentos nada republicanos.
A arte da política deveria ser em teoria, quando as melhores lideranças da sociedade, aquelas mais virtuosas e sábias, se colocam a serviço do bem comum. Quando colocam seu tempo privado, para trabalharem pelas decisões justas e para construção de soluções aos problemas do grupo, sem pensar no benefício pessoal. Essa é a visão de Platão, em sua obra “A república”, porém como a teoria é diferente da prática, e ainda mais no circo “brasiliano”, o que temos no cenário político é uma “dança de interesses privados” que trabalha pelo patrimônio de uma elite política e econômica em detrimento do interesse da maioria do povo. Essa presente reflexão, busca pontuar o conflito do discurso político e das propostas de revisão de rumos, que na ânsia de desqualificar qualquer ação pretérita, acaba por condenar o país ao voo de galinha.
No linguajar da política
econômica, o arcabouço institucional é como um esqueleto ou estrutura
de princípios que vão ordenar um setor da sociedade. Há um debate
atual e necessário sobre as alterações no nosso regime fiscal e que devem ser implementadas
através de conjunto de regras, normas, leis e procedimentos que possam viabilizar
as finanças públicas, já que os programas de investimentos e operação
do Estado demandam mais recursos do que há previsto na arrecadação. Não vamos
aprofundar neste momento os aspectos das propostas do novo arcabouço fiscal,
das qualidades e dos furos que já podem ser verificados no Plano de Haddad, e
de como o aumento de gastos públicos vão impactar em impostos e o pior, na
inflação que é um mecanismo de “imposto”, perverso sobre os mais pobres. Vamos
concentrar o entendimento numa maldade que a política faz com o futuro dos
brasileiros, através da destruição do marco do saneamento.
Para resgatar a história recente, a Lei 14.026 de 2020, veio regulamentar e atualizar o setor do saneamento, que apresentava um vergonhoso padrão de atendimento de apenas 43% de esgoto tratado, segundo a ANA (agência nacional de águas). Ou seja, quase 100 milhões de pessoas não tinham esgoto tratado no Brasil, pois não havia um compromisso de atendimento e nem a competição do setor. Cumpre observar que até essa data, o serviço era prestado predominantemente das empresas estaduais públicas, que em sua maioria não dispunham de mecanismo para financiar a expansão do sistema e que eram ineficientes por conta de uma gestão politizada. O novo marco, com metas ambiciosas de atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033; incentiva a participação do setor privado, com atração de investimentos e de uma gestão comprometida com resultados, mas mantém a água como um bem universal de acesso social. Dessa forma os novos contratos buscam reduzir as perdas de produção, hidrometração e acesso a comunidades antes mal atendidas, como as populações rurais e de aglomerados urbanos.
A tarifa social foi expandida, os modelos de governança e transparência são priorizados e o principal é que água continua sendo entendida como benefício de todos, porém com entendimento que há um custo social para sua produção, tratamento e distribuição. E que da mesma forma o tratamento do esgoto é um cuidado com o meio ambiente que beneficia a todo o povo. Vale destacar que a ANA, recebe a missão de regulamentar, criar normas de referência para todo o setor, muito embora existam agências estaduais e municipais encarregadas da fiscalização dos contratos e dos serviços. Há muitos aspectos a serem exaltados do marco do saneamento conforme proposto pela lei de 2020, como a extinção dos contratos de programa, a regionalização, o controle social e a força dos municípios e da solução local. E como consequência desta ação pública, foi o imediato impacto sobre o setor que em poucos anos apresentou um rearranjo dos serviços, trouxe investimentos que já mudaram o cenário de algumas cidades e das outorgas com recursos que entraram para os cofres de estados e municípios.
Cumpre observar que o marco do saneamento, foi uma reforma democrática,
amplamente discutida no congresso nacional, durante quase uma década e com a
participação de representantes do povo. Portanto, assusta a quem defende a
democracia, quando o movimento político de um decreto do poder executivo, ainda
que eleito com 52% venha a destruir os ganhos e conquistas do setor. A pergunta
que se faz é: – A quem interessa a desconstrução de avanços?
A eleição majoritária resultou
em um país dividido em duas metades, numa eleição marcada por narrativas e
casualidades. Mas uma vez concluído o processo, o que se espera é que os
vencedores construam um entendimento de soluções com diálogo e debates para uma
via de entendimento nacional. Não faz sentido a continuidade do clima de
radicalismos que não propõe soluções de avanço. O chamado voo de galinha é
aquele em que nunca decolamos, pois quando se está tomando impulso para voar,
você volta ao solo, à estaca zero. É como uma equipe de pedreiros que começa a
construção de uma casa. Muda o mês e o dono da obra elege outro grupo para
continuar a obra, mas quando há substituição do time, todas as paredes que estavam
levantadas são jogadas ao chão para se iniciar tudo de novo. No caso do
saneamento, o que se percebe é algo bem cruel com o povo, pois se viola o
debate democrático que deve ser conduzido no Congresso Nacional e ataca alguns
avanços como a possibilidade para se executar os serviços sem licitação através
de empresas públicas e sem a capacitação correta, quando não há ondições
econômicas de sustentabilidade. Isso significa que para o financiamento de
novos contratos, poderá haver uma dotação através do orçamento estatal que
aumenta a dívida pública e a médio prazo inviabiliza os entes subnacionais ou
que haverá pressão inflacionária.
E nesse sentido o decreto
que altera o novo marco do saneamento joga contra o interesse do usuário, pois
aloca serviços no setor público e retira o incentivo do privado que tem maior
capacidade de conduzir obras e gestão em condições de eficiência. Nossa visão é
de que o decreto claramente provocará retrocessos, afasta investimentos,
sobrecarrega as contas públicas, retira outorgas públicas e oportunidades para
os Estados, reduz a capacidade de cumprimento das metas para 2033. Enfim,
parece um gol contra do governo, que inclusive desqualifica a ANA, que
recentemente tem feito um grande esforço para responder à altura diante de suas
novas atribuições.
Não sabemos a quem interessa a
desconstrução dos avanços. Torcemos pelo sucesso do novo governo e para a
melhoria do bem-estar dos brasileiros. Especialmente do povo mais pobre e
vulnerável e que é diretamente beneficiado por políticas como o
saneamento. Não entendemos claramente quem são as mentes brilhantes que
propõe políticas de curto prazo, e que vão contra uma visão
estratégica de estado. Parecem atender interesses específicos. Não fica claro
se são reformas do interesse de alguns partidos ou lideranças, ou de setores do
governo. O fato é que para construção de um entendimento nacional é preciso
mais diálogo e menos radicalismo institucional. Parece que esse time além de
não ler livros de economia, também se esquece das lições do passado e insiste
em teses que já se mostraram erradas, atrasadas e com alto custos social.
A forma como se articulam os arcabouços estão se configurando como prisões
subterrâneas, escuras e misteriosas. São cárceres que vão aprisionando
a capacidade de articulação política, do diálogo e que retiram a liberdade da
economia. Ou os políticos tomam juízo e se prestam a dialogar com sabedoria
para construir uma economia voltada para o bem comum ou vamos nos
afundando nesses calabouços que são verdadeiras armadilhas para a democracia.
Título e Texto: Alberto Gallo, Diário do Rio, 7-4-2023
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