José Manuel Fernandes
Muitos choram lágrimas de crocodilo porque
o Chega elegeu um deputado. Em vez disso era mais útil e menos arrogante tratarem
de perceber o que está mal para ter sido a escolha de tanta gente humilde.
1 Foi esta terça-feira de manhã em Valença do Minho. De um
lado um cordão de professores e funcionários da Escola Básica 2/3 da cidade em
manifestação de repúdio contra a violência no meio escolar e as agressões a
profissionais da educação. Do outro lado da rua um grupo de pais de etnia
cigana exibia cartazes contra o racismo. A GNR zelava para que os ânimos não
fervessem.
Devo dizer que levei algum
tempo até perceber, ao ver os diretos nas televisões, que era este o retrato da
situação. Já sabia que o pretexto próximo do cordão humano eram agressões
ocorridas na quinta-feira da semana passada, já sabia que uma auxiliar de
educação negra fora insultada por uma aluna que fora ao ponto de lhe chamar “preta de m…”, mas primeiro só na imprensa regional
do Minho (Alto Minho e Diário do Minho) se descrevia o conflito com clareza. Só lá
se informava que os contramanifestantes eram de etnia cigana. E só lá se podia
ler a defesa dos representantes da comunidade escolar: “esta é uma manifestação
contra a violência e não uma manifestação contra a comunidade de etnia cigana”.
Procurei mais um pouco e
encontrei a notícia da RTP. Vendo-a percebe-se o que ali se passou.
Ouvindo o depoimento da professora também. Quer quando ela diz que “é difícil a
integração quando as pessoas não se querem integrar”, quer quando explica que
tem medo que pois todas as manhãs, “quando aqui chegamos, nunca sabemos o que
nos vai acontecer”.
Repito: tudo isto se passou
esta terça-feira em Valença do Minho. Façam as leituras que quiserem, eu neste
momento interessa-me uma: a que olha para a omissão dos jornalistas. Para o seu
esforço de silêncio sobre o envolvimento da comunidade cigana naquelas
agressões e naquelas manifestações.
2 Por que este silêncio? Será porque o Código Deontológico
dos Jornalistas estabelece, no seu ponto 9, que o jornalista deve rejeitar o
tratamento discriminatório das pessoas em função da sua etnia? Essa seria uma
boa razão, mas não pega. E não pega porque aquele grupo de manifestantes de
etnia cigana estava ali a manifestar-se “contra o racismo”. Sendo assim, porque
silenciaram os repórteres o protesto antirracista? Acho que é fácil perceber
porquê: o “antirracismo” não tinha pernas para andar.
Por isso aquela omissão sobre
uma parte do que se estava a passar foi, não duvidemos, mais uma manifestação
daquilo a que os teóricos da formação da opinião pública chamam uma “espiral de silêncio”. São temas que se tornam tabus mesmo
em democracias liberais, assuntos que por serem classificados como contrários
ao interesse comum acabam banidos do debate público. Não há censura, há
autocensura. É um mecanismo onde os órgãos de informação desempenham um papel
central, como o que verificamos em casos como o de Valença: jornais e
televisões optam pela abordagem consensualmente aceite pelas elites em vez de refletirem
as preocupações e as ansiedades dos cidadãos comuns. Omitindo-as mesmo se
necessário.
3 É precisamente o vazio criado por esta omissão que o Chega
ocupa, sem complexos. Ele sabe que as pessoas sabem porque as pessoas vivem
realidades que, pura e simplesmente, são silenciadas pela comunicação social.
Que não sabe como lidar com elas a não ser com base em chavões.
Valha a verdade que não é a
primeira vez que se fala da etnia cigana em campanhas eleitorais, pois é bom
recordar os “ciganos do rendimento mínimo” que tão glosados foram por Paulo
Portas na campanha de 2002 (a campanha do “Paulinho das feiras”), mas basta
olhar para a forma como se distribuiu a votação do partido de André Ventura
para perceber que não convém tentar tapar o sol com uma peneira.
Título e Texto: José Manuel
Fernandes, Observador,
23-10-2019, 00h01
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