José Serra
A democracia representativa é
a celebração de um compromisso: o cidadão delega a um igual o privilégio de ser
seu porta-voz. Se esse vínculo se perde, se o representante se distancia do
representado, então é o próprio modelo que se descaracteriza. Depois de algum
tempo, cerca de 70% dos eleitores brasileiros não se lembram do voto para
deputado estadual e federal. O custo de nossas eleições parlamentares é
astronômico, o mais alto do mundo, e a vigilância que o votante exerce sobre o
votado é praticamente nenhuma, o que concorre para a degeneração dos partidos.
Campanhas caras, falta de
representatividade e frustração dos eleitores com os parlamentares: eis um
tripé característico da política brasileira. Esses fatores têm raízes
históricas e culturais. Resultam também da falta de controles legais, da
impunidade e das falhas de informação. E ainda, como nos últimos anos, da
generalização do uso sem pudor das máquinas de governo, pela entrega de
capitanias a partidos e grupos de partidos. Mas não há dúvida de que as regras
político-eleitorais têm tido papel decisivo na manutenção desse tripé.
Pelas regras atuais, os
partidos apresentam listas de candidatos que disputarão os votos de todos os
eleitores do Estado (ou município, nas eleições para vereador). Nesse sistema
proporcional, quanto mais candidatos por legenda, melhor, pois a soma de votos
deles vai definir o número de parlamentares eleitos por partido. E elegem-se os
individualmente mais votados.
O sistema exacerba o
individualismo político, cria um fosso entre o eleito e o eleitor e implica
gastos elevadíssimos. Em São Paulo, por exemplo, cada candidato a deputado deve
buscar votos entre 30 milhões de eleitores, em todo o Estado, competindo com
centenas de rivais, inclusive os colegas de partido. Note-se que os altíssimos
custos dessas campanhas são, em boa parte, transferidos para os candidatos
majoritários - a presidente, governador e senador (e prefeito, nas eleições
municipais).
A partir da introdução da
reforma política na agenda do Congresso, abriu-se o debate e vieram as ideias
sobre mudar as regras de voto e introduzir o financiamento exclusivamente
público das campanhas eleitorais. Isso acabou sendo um dos tópicos centrais do
projeto preparado pelo relator da reforma na Câmara, deputado Henrique Fontana
(PT-RS). Para ele e seu partido, as campanhas deveriam ser pagas com recursos
do Orçamento federal. Esses recursos iriam para um fundo público de campanha,
sendo distribuídos pelo TSE aos partidos; 80% seriam alocados de forma
proporcional aos votos que as agremiações obtiveram na eleição anterior para a
Câmara de Deputados; 15%, de forma igualitária entre as que têm representantes
na Câmara; e 5% igualmente entre todos os partidos. Poderia haver contribuições
privadas, de pessoas físicas e jurídicas, mas a esse fundo, e não diretamente a
candidatos ou partidos.
Segundo seus defensores, as
virtudes da mudança seriam duas: primeira, baixar os custos de campanhas
eleitorais, a partir da fixação do teto de despesas; e, segunda, reduzir a
influência do poder econômico nas eleições.
É sintomático que a proposta
descrita beneficie diretamente os dois maiores partidos - PT e PMDB -, que
detêm hoje o maior número de deputados federais e por isso ganhariam uma
vantagem financeira insuperável. Os partidos com bancadas grandes já dispõem da
vantagem do maior tempo de TV no horário gratuito e de maior fatia anual do
fundo partidário. Essas regalias são caras: o horário eleitoral custa aos
cofres do Tesouro pelo menos R$ 850 milhões, sob a forma de dedução do Imposto
de Renda das TVs e rádios; o fundo partidário, previsto no Orçamento federal,
custa mais R$ 300 milhões por ano.
Na sua essência, a proposta em
debate pretende, no mínimo, congelar a correlação de forças. Eventuais mudanças
nas preferências dos eleitores em quatro anos não terão nenhum reflexo nos
recursos disponíveis para cada partido na eleição seguinte. Mais ainda: um
partido forte num Estado (ou município), mas modesto em termos de bancada
federal, sofreria prejuízos ainda maiores na campanha estadual (ou municipal)
seguinte. Assim, uma nova distorção seria introduzida na política brasileira e
não seria compensada pela redução dos custos das campanhas eleitorais ou pela
maior igualdade de recursos entre os candidatos, pelo simples fato de que o financiamento
público exclusivo só faria aumentar a tentação do "caixa 2".
Se ao lado das contribuições
privadas legais hoje ainda existem suspeitas de persistir o financiamento
paralelo, imagine-se o que aconteceria caso elas fossem proscritas. Como disse o
senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), a proibição do financiamento privado só
contribuirá "para esconder as relações dos partidos com entidades privadas
e organizações da sociedade civil, mas não para impedi-las". Na mesma
linha, segundo o ex-ministro Nelson Jobim, o projeto do PT "empurraria os
candidatos para a ilegalidade", até porque o anteprojeto apresentado à
Câmara também prevê um novo sistema eleitoral que preservaria os altos custos
atuais.
Segundo a proposta petista, o
eleitor deveria votar duas vezes: numa lista partidária preordenada de um
partido e num candidato com nome e sobrenome, de qualquer partido, escolhendo
entre centenas de candidatos que concorrem em cada Estado (ou município). Não
há aqui espaço para explicar a nova metodologia, de tão confusa. Se o eleitor
já entende pouco das regras atuais, a chance de compreender as novas seria
menor ainda. Elas só fariam aumentar a opacidade e as taxas de manipulação do
sistema político-eleitoral. Trocar-se-ia o ruim pelo pior.
A redução de custos, a
transparência, a maior vinculação entre eleitor e eleito e o fortalecimento dos
partidos, tudo isso pode ser alcançado por outro caminho: introdução de um
sistema eleitoral distrital, puro no caso dos vereadores dos municípios maiores
e misto no caso dos deputados. Mas esse é assunto para outro artigo.
Título e Texto: José Serra,
ex-prefeito, ex-governador, de São Paulo, Originalmente publicado no “Estado deS. Paulo”, 22-09-2011- Enviado por Alvaro Pedreira de Cerqueira
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