O Paraguai é ainda uma
democracia em funcionamento, o que é mais do que se pode dizer de outros países
da região, tais como a Venezuela e a Nicarágua.
Jaime Daremblum
O que aconteceu no mês passado
no Paraguai não foi um golpe, nem foi uma violação à Constituição nacional do
país. Ao contrário, a deposição do presidente Fernando Lugo resultou exatamente
do cumprimento da Carta Magna paraguaia. Lugo, um ex-bispo católico socialista,
foi sumariamente impedido de continuar em seu cargo por impeachment votado por
ampla maioria no Congresso (Câmara e Senado) e plenamente ratificado pelo Poder
Judiciário do pequeno país sul-americano. Mas, apesar da normalidade
democrática do processo, a defenestração do socialista causou una barragem de
fogo diplomático de seus países vizinhos contra o novo governo assumido
conforme o rito e o protocolo pelo vice-presidente Frederico Franco.
![]() |
PRESSÃO SOCIALISTA EXTERNA – Membros da UNASUL ameaçando
o Senado paraguaio com medidas de retaliação,
que os bravos legisladores
guaranis ignoraram solenemente.
|
Eis aqui um breve sumário dos
fatos que culminaram no impeachment de Lugo:
Em 15 de junho, por razões que
ainda não foram totalmente esclarecidas, 17 paraguaios — seis policiais e onze
“sem-terra” — morreram num tiroteio que se seguiu a uma ação de reintegração de
posse de uma fazenda invadida na localidade de Curuguaty, próxima à fronteira
com o Brasil. Os “camponeses” tinham
se entrincheirado com suas armas de fogo numa propriedade invadida pertencente
a um ex-senador paraguaio e membro proeminente do conservador Partido Colorado,
que governou o país (primeiro sob a ditadura de Stroessner e depois, após 1992,
sob o regime democrático) de 1947 a 2008. O derramamento de sangue ocorreu
quando a polícia paraguaia foi ao local para cumprir o mandato judicial de
evicção de direito dos proprietários. A seguir, o ministro do interior e o
chefe nacional de polícia do Paraguai se demitiram.
Mas os opositores do
Presidente Lugo no congresso nacional não ficaram satisfeitos. Eles sustentaram
que o incidente de Curuguaty era uma evidência da ampla incompetência do
presidente da república, que era acusado de encorajar as invasões violentas de
terras em torno da cidade paraguaia de Ñacunday. Culparam-no pelo clima de
deterioração da segurança nacional no Paraguai. Tais acusações, entre outras,
se constituíram na base para um procedimento de impeachment, que começou menos
de uma semana após o tiroteio de Curuguaty.
Em 21 de junho, numa votação
quase unânime (76 a 1), os 80 membros da Câmara dos Deputados aprovaram o
impedimento de Lugo. Um dia depois, os 45 membros do Senado julgaram e
condenaram o mandatário por “mau desempenho de suas funções” a ser deposto de
seu cargo. Uma vez mais, a votação foi próxima da unanimidade (39 a 4). Naquele
momento, Lugo estava formalmente deposto do cargo de Presidente da República e
substituído, como reza a Constituição do país, pelo vice-presidente, Federico
Franco. Todo esse processo foi ratificado pela Suprema Corte de Justiça do
Paraguai.
Nenhuma crítica séria ao
Congresso paraguaio negou que os legisladores e os juízes tivessem agido dentro
de sua autoridade e conforme o Artigo 225 da Constituição Paraguaia em vigor desde 1992. Embora haja preocupações válidas com relação
à velocidade do processo que, de fato, fez com que todo o processo de
impeachment tenha levado menos de dois dias do começo ao fim, e os advogados de
Lugo tiveram meras duas horas para montar a defesa de seu cliente.
Segundo se crê, é
compreensível que se condenem os legisladores paraguaios pela presteza e
ligeireza com que julgaram e condenaram Lugo a deixar o cargo. Tal açodamento
em se livrar do socialista manchou o processo e deu ao ato uma impressão de
impropriedade. Mas não é justo taxar o impeachment de Lugo como um “golpe”, ou
menosprezar a legitimidade do Presidente Franco, ou ainda alegar que o Paraguai
não é mais uma democracia “real”. Afinal, o Artigo 225 da Lei Paraguaia maior
não diz nada sobre a ‘velocidade’ de um processo de impeachment e, a julgar
pela votação no Legislativo, ao que parece, todos já estavam querendo se livrar
se seu presidente que, por sua incompetência e ideologia, vinha pondo em risco
a estabilidade social em seu país. Embora Lugo e seus advogados pudessem
merecer mais tempo para preparar e apresentar uma defesa, isso a Constituição
não lhes garantia.
Teria sido o impeachment uma
punição excessivamente severa e dura pelo fraco desempenho político e
administrativo do Presidente Lugo? Talvez, mas a Constituição paraguaia dá ao
Legislativo ampla prerrogativa para determinar se o impeachment é ou não
aplicável. É claro que, havendo – como ficou evidente – uma ampla margem a
favor do mesmo, não há mesmo motivos para que se prolongue o processo em
discussões colaterais. Quem está de fora, certamente, questiona a prudência de
julgar e condenar Lugo por “mau comportamento”. Podem também questionar a
apressada natureza do processo. Mas, mesmo que o Congresso paraguaio tenha
agido de forma imprudente e apressada, sua atuação foi inegavelmente legal.
Infelizmente, o debate latino-americano
sobre o Paraguai foi dominado por Hugo Chávez e seu bando de acólitos
socialistas na Argentina, na Bolívia, no Equador, na Nicarágua, e mais
tardiamente, pelo governo brasileiro, que consideram Lugo mais como um aliado
ideológico do que como um funcionário público, cuja competência pouco lhes
interessa. “Chávez e sua coorte de diplomatas estabeleceram o tom da reação
regional”, lamenta
o jornalista peruano Álvaro Vargas Llosa. Para não ficar de for a da pressão
socialista sul-americana, o regime comunista de Havana deu uma das mais risíveis declarações da história diplomática recente: “O governo cubano declara que
não reconhecerá qualquer autoridade que não seja proveniente do legítimo
sufrágio e exercício soberano do povo paraguaio”. Parece piada, mas não é.
Para compreender a
significância do que transpirou no Paraguai, é útil comparar os eventos que
cercaram a defenestração de Fernando Lugo com a grande crise política latino-americana
de 2009, quando a Corte Suprema e o Congresso hondurenho estabeleceu o
impeachment do então Presidente Manuel Zelaya, que foi subsequentemente preso e
levado de avião para Costa Rica pelos militares do país.
Em cada caso, as instituições
democráticas usaram de meios legais e constitucionais para remover do cargo um
presidente impopular e que, de uma forma ou de outra ameaçava desestabilizar o
país. Em cada caso, a remoção do presidente foi amplamente apoiada pelos
poderes legislativos e judiciários desses países. Em cada caso, um aspecto do
processo — no Paraguai, a velocidade do julgamento de Lugo e, em Honduras, o
exílio de Zelaya para a Costa Rica — foi considerada pelos ‘críticos’ como
evidência de que a coisa toda não passou de um golpe. E, em cada caso, foi a
Venezuela o pivô que furiosamente conspirou junto aos militares para que dessem
um golpe, aí sim, autêntico, e tocou os tambores de um pretenso coro de
“ultraje regional”.
Muitos jornalistas e
legisladores na América latina (e nos Estados Unidos, é bom que se diga) ainda
se recusam a reconhecer que a deposição de Manuel Zelaya foi um ato legal de
soberania nacional de Honduras. Mas um estudo de 2009 da Biblioteca de Direito do Congresso americano concluiu que “os
poderes Legislativo e Judiciário em Tegucigalpa aplicaram a lei constitucional
e estatutária no caso do impeachment do Presidente Zelaya de um modo que foi
julgada pelas autoridades hondurenhas de ambos os poderes de governo como
estando de conformidade com o sistema lega em vigor em Honduras”. Para se
certificar disso, esse mesmo estudo também afirmou que o exílio de Zelaya
violou o Artigo 102 da Constituição hondurenha, e Ramón Custodio, um
funcionário veterano do governo interino de Honduras que assumiu o poder após a
remoção legal de Zelaya, mais tarde disse
que tê-lo enviado à Costa Rica foi um “erro” (Devemos, no entanto, lembrar que
os militares hondurenhos tinham uma forte razão para despachar Zelaya para o
exterior: o acólito de Chávez tinha deixado claro sua disposição de usar a violência para se
manter no poder).
Voltando a 2009, a Organização
dos Estados Americanos (OEA) respondeu à destituição de Zelaya suspendendo
temporariamente Honduras da organização (O país foi readmitido em junho do ano
passado). Até o momento em que escrevo esse texto, a direção regional da OEA,
com base em Washington, ainda não tinha suspendido o Paraguai por causa da
destituição de Lugo, mas havia crescente especulação de que isso poderá
acontecer.
O que quer que se pense da
controvérsia do impeachment seria de uma hipocrisia extrema e moralmente
indefensável que a OEA suspenda ou expulse o Paraguai após repetidamente fazer
vistas grossas à obliteração da democracia na Venezuela, para não mencionar os
abusos autocráticos do kirchnerismo peronista na Argentina, na Bolívia, no
Equador, e na Nicarágua.
Quatro anos depois, por
exemplo, o Partido Sandinista que governa a Nicarágua descaradamente fraudou as
eleições municipais (incluindo a eleição do prefeito de Manágua), provocando o
congelamento da ajuda econômica europeia e americana ao país. Um ano depois, os
sandinistas usaram cortes de justiça formadas ilegalmente como máfias para
abolir os limites do mandato presidencial para permitir a reeleição ilegal de
Daniel Ortega. São golpes a partir do governo contra a própria Constituição. A
eleição nacional de 2011, ‘vencida’ por Ortega, foi marcada por manobras
sandinistas ainda mais fraudulentas.
Apesar do observador chefe da
União Europeia, Luis Yáñez-Barnuevo, ter concordado que Ortega foi o vitorioso,
ele tinha sérias dúvidas sobre a margem de votos sandinistas que deram a Ortega
a reeleição. “Não digo que eles ganharam de forma fraudulenta, mas não sei
dizer o que teria acontecido se não fosse todas aquelas jogadas e manobras
ilegais não coibidas pelo sistema eleitoral”, disse
Yáñez-Barnuevo.
Em momento algum, durante
aquele assalto sem tréguas à democracia, a OEA considerou qualquer punição à
Nicarágua. Nem a Venezuela foi cogitada de ser suspensa, apesar de Chávez ter
criado, na prática, uma ditadura ferrenha que está matando muita gente no país.
O mesmo se pode dizer da Bolívia, por seus seis anos de perseguição política
aos opositores e a erosão democrática a que se dedica o índio cocaleiro Evo
Morales. Muito menos à Argentina e ao Equador foi dada sequer uma simples
admoestação pelos ataques de seus governos à liberdade de imprensa e ao direito
de propriedade particular.
Por hora, o padrão dúbio
empregado pelo Secretário-Geral da OEA José Miguel Insulza (no cargo desde
2005) é embaraçosamente óbvio. Independente dos seus malfeitos, Chávez e outros
socialistas autocráticos não precisam temer qualquer punição da instituição
‘multilateral’ que deveria proteger a democracia na América latina.
Mas o problema se situa além
de Insulza. Caso as nações mais poderosas da América latina, Brasil e México,
estivessem verdadeiramente empenhadas em defender a democracia na região, a OEA
poderia assumir uma posição autêntica e firme nesse sentido contra os abusos
ditatoriais de Chávez et caterva. Todavia, países como o Brasil têm permitido
que o “homem forte” da Venezuela consiga solapar a democracia tanto em casa
como no exterior, sem mover uma palha para evitar. De fato, no mesmo dia do mês
passado (29 de junho) em que o bloco comercial sulamericano MERCOSUL de reuniu
na Argentina, suspendeu
o Paraguai de comparecer às suas reuniões, com o bloco anunciando também a
inclusão da Venezuela como uma nação membro permanente.
Uma palavra final sobre a
Venezuela e o Paraguai: autoridades paraguaias acusaram
o Ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Nicolás Maduro, de tentar
incitar um golpe militar para manter Lugo no cargo de Presidente, e, como não
conseguiu, retirou seus embaixadores de Assunção com a saída concomitante dos
diplomatas paraguaios de Caracas. Com tal finalidade, Venezuela parece não ter
sido a única nação da região a tentar desencadear um levante pró-Lugo no seio
das Forças Armadas paraguaias: como observou o
blogueiro de Política Externa, Francisco Toro: “O embaixador do Equador no
Paraguai também tentou conspirar para uma revolta militar, qualificando o
episódio como uma conspiração internacional a bandeiras desfraldadas”.
Não esperem que a OEA dê a
devida atenção a tais fatos.
Título e Texto: Jaime Daremblum, que serviu com embaixador costarriquenho nos EUA
de 1998 a 2004, é diretor do Centro para Estudos Latinoamericanos no Hudson Institute.
Tradução de Francisco Vianna – da PJ Media
Nota do tradutor: os links no
texto levam a páginas em inglês.
Relacionados:
Ainda o Mercosul
Democracia na América do Sul: perguntas incômodas
Lula da Silva está com Chávez, de alma e coração,
Paraguai x Brasil
Golpe contra o Mercosul
Relacionados:
Ainda o Mercosul
Democracia na América do Sul: perguntas incômodas
Lula da Silva está com Chávez, de alma e coração,
Paraguai x Brasil
Golpe contra o Mercosul
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-