Eliana Calmon: A Justiça
depois do mensalão
A ministra deixa a Corregedoria do Conselho
Nacional de Justiça certa de que a condenação dos mensaleiros
vai levar à tolerância zero com acorrupção nos tribunais brasileiros
Veja - 10/09/2012
Foto: AD |
Eliana Calmon é capaz de
ficar horas e horas falando sobre culinária. Sua especialidade mais admirada,
porém, é outra. Há dois anos, ela assumiu o cargo de corregedora do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) prometendo combater com rigor os desmandos dos
juízes. Não era promessa de político. Antes disso, já tinha se
envolvido em sonoras brigas no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao
denunciar que alguns de seus colegas faziam conchavos para interferir
na escolha dos novos integrantes da corte e, assim, influir
em suas futuras decisões. No CNJ, a ministra apontou a existência de
"bandidos escondidos atrás de togas", generalização que atraiu
sobre ela a ira da categoria. Sob seu comando foi aberto
um número recorde de processos para apurar a conduta irregular
de juízes. Na semana passada, antes de deixar o cargo de corregedora e
voltar ao STJ, a ministra fez a VEJA um balanço de
sua gestão.
O julgamento do mensalão
terá algum impacto sobre a Justiça brasileira como um
todo?
Esse é um julgamento de importância fundamental para o
Brasil, porque toda a nação está examinando como se comportará o
Poder Judiciário. O Judiciário também está sendo julgado. Esse julgamento
vai refletir o que é a Justiça brasileira. Os ministros podem
condenar ou absolver, mas terão de mostrar com clareza por que estão
condenando ou absolvendo. Isso está sendo feito.
O rigor que os ministros do Supremo
têm demonstrado com relação à corrupção reflete uma mudança de parâmetros?
O
Supremo faz com que a magistratura se enquadre num novo modelo. Toda carreira —
e a magistratura em especial vive de lição e exemplo. Temos de
ser exemplo para as pessoas que estão abaixo de nós. No momento em
que o Supremo ensina a lição e dá exemplo, vira referencial. O
juiz de comarca passa a ter referência, admiração, e passa a trabalhar
para se igualar àqueles que ele admira no topo da hierarquia.
Quando o Supremo faz um julgamento técnico, sério e até rápido, com
votos compreensivos, como tem sido neste caso, isso transmite credibilidade ao
povo brasileiro. O Supremo está dizendo que a corrupção, que durante dois
séculos reinou neste país, a partir de agora tem um freio,
e esse freio está no Poder Judiciário. Não haverá mais tolerância com a corrupção.
Não tenho dúvida de que isso já está provocando mudanças nos planos
de certos bandidos, inclusive os de toga.
Por que essa atitude mais
proativa em defesa do bem público demorou tanto a chegar ao
Poder Judiciário?
A Justiça não se apercebeu das mudanças
que a Constituição trouxe. Na medida em que o Judiciário
não tem consciência de seu papel, vira o chancelador do que
os outros poderes decidem. O Judiciário demorou a perceber que tem
poder próprio e não deve funcionar como extensão dos outros poderes.
A senhora deixa o
Conselho Nacional de Justiça mais assustada ou mais aliviada?
Conheci as
entranhas do Poder Judiciário e pensei que a situação
estivesse melhor. Na Corregedoria, eu vi a Justiça em uma situação
muito negativa. A gestão, por exemplo, ainda é muito ruim.
Mas saio aliviada porque me aproximei muito dos tribunais, que
perceberam que com boa gestão é possível melhorar. Não digo que fiz um saneamento,
mas fiz parceria com os presidentes dos tribunais. São Paulo é um exemplo
que me deixa maravilhada. Era um tribunal fechado, que nunca aceitou
o CNJ, mas no fim conseguimos avançar. É preciso eliminar de vez o patrimonialismo
e o compadrio. Alguns tribunais até hoje fazem favores ao governador,
e o governador arruma emprego para parentes de juízes.
A senhora gerou
uma crise sem precedentes no Judiciário quando disse que há bandidos
escondidos atrás de togas. Eles existem mesmo?
É claro que há bandidos
de toga. É só olhar o número de juízes afastados por improbidade, olhar o
número de investigações instauradas nos últimos tempos. Os números são grandes.
Olhe que a Corregedoria do CNJ tem uma estrutura pequena para tantos
problemas, e não temos condições de descobrir tudo. Aquilo que eu falei, e
não foi generalizando, falei numa linguagem forte para mostrar que
muitas vezes as pessoas querem se esconder atrás da toga porque
buscam a proteção que o cargo dá. Na verdade, eu acabei sendo intérprete
da consciência coletiva.
Qual foi a parte
mais difícil do trabalho da senhora como corregedora?
A função
disciplinar é difícil porque há uma grande resistência por parte dasassociações
de juízes. O corporativismo é forte. Ainda pensam que, se acharmos
corrupção, temos de resolver a questão internamente, sem levá-la ao
conhecimento da sociedade. Eu penso diferente. Nós temos, sim, de levar as
mazelas do Judiciário ao conhecimento da sociedade. Uma das
punições é justamente essa. Até porque a legislação que trata de
punições a juízes é muito antiga. Por ela, a punição
máxima para um desembargador é aaposentadoria. Se não for uma falta gravíssima,
ele ficará sem punição. Daí eu acho que uma das penas mais temidas é a divulgação
daquilo que for constatado.
Qual é o perfil desses “bandidos
de toga” a que a senhora se refere?
Obviamente não
estou afirmando que todos os juízes que dizem só falar nos autos são bandidos,
mas o criminoso de toga tende a ser um juiz hermético, formalista,
que fala pouco e não recebe as partes. Mas ele está apenas se
escondendo atrás do formalismo. Essa atitude o beneficia. O
objetivo dele é fazer da Justiça um balcão de negócios. Ele sabe quais
processos podem render dinheiro. Existem alguns nichos preferenciais, como
os processos por dano moral.
Por quê?
Porque o
dano moral não é mensurável pela lei. Os bancos também são vítimas
frequentes. Os juízes dão decisões, impõem multas estratosféricas e mandam
depositar o dinheiro imediatamente. Muitas vezes o juiz se associa ao advogado e
divide os lucros. É claro que, em um universo de 16000 juízes, nem 2% fazem
isso, mas o estrago para a carreira é muito grande. Essa é a pior
face da magistratura.
A senhora fala muito
da “intimidade indecente” entre o Judiciário e a política. Por
que ela teima em existir?
Isso vem de dois séculos. O
Judiciário sempre foi conivente com os outros poderes, sempre foi um chancelador do que
os outros poderes decidiam. Até hoje há juízes que comungam da ideia de
que é preciso ser amigo do rei.
O modelo de nomeação de
juízes de tribunais superiores, que são escolhidos politicamente por decisão do presidente
da República, contribui paraessa relação?
Esse é o caminho.
Em todos os países, quem escolhe os ministros da Suprema Corte é o
presidente da República. Pensei muito nisso, inclusive quando passei
por esse processo para chegar ao STJ. É doloroso para um
juiz de carreira enfrentar um processo tão político. Você aprende que
um magistrado deve ficar afastado da política, não deve se
imiscuir na política, mas na hora H tem de passar a cuia entre
os políticos pedindo o favor da indicação.
Existe uma maneira de
quebrar essa situação de dependência do Judiciário em relação aos
políticos?
Do ponto de vista formal, o processo de escolha de
ministros de tribunais superiores é perfeito. O indicado é escolhido pelo
presidente da República e submetido ao Senado, que o sabatina para ver
se tem notável saber jurídico. Tudo isso é público e as pessoas podem avaliar
se o indicado tem os requisitos necessários para o cargo. Tudo perfeito.
Mas só na teoria. Na prática é diferente. Falta responsabilidade.
Dentro do Judiciário, no qual se diz que não existe política, há a política miúda dos
grupelhos que se acertam para escolher quem vai compor as listas
de indicados. O Executivo escolhe de acordo com os apoios
políticos, ou seja, os padrinhos. Por sua vez, o Legislativo, que deveria analisar
o saber jurídico e a reputação ilibada do indicado, não faz
o que deve. Antes da sabatina, o indicado visita os gabinetes dos
senadores para amortecer intervenções que não sejam do seu agrado. A sabatina vira apenas
uma formalidade.
A senhora também
teve padrinhos?
Lógico. Todo mundo busca apoio, só que
ninguém diz. Eu tive como padrinhos os senadores Antonio Carlos Magalhães,
Renan Calheiros, Jader Barbalho e Edison Lobão. Amigos me levaram até
eles, e eles se tomaram meus padrinhos.
Esse apadrinhamento
não é cobrado depois, na forma de algum favor?
Imagino
que sim. A mim nunca fizeram pedido, porque quando cheguei
lá coloquei tudo às claras, incluindo os nomes de quem me indicou.
Quem vai pedir alguma coisa a uma língua ferina como
esta minha? Nós precisamos é de seriedade institucional. Na hora de
escolher alguém para um cargo relevante, não se pode pensar em colocar
o amigo, alguém que vá fazer favor. Tem de ser o melhor possível, para fazer
justiça, para ser um bom ministro.
A senhora foi acusada de abuso
nas investigações de juízes especialmente quando começou a apurar
suspeitas de enriquecimento ilícito. A reação foi exagerada?
Eu tratei as
questões do Judiciário de forma muito incisiva e crua. E
isso chocou um pouco. É um poder muito fechado e corporativista, que se
sentiu agredido. Mas eu falei o que tinha de falar, e fiz isso para chocar
mesmo, porque, se não chocasse, não causaria o efeito que causei. Eu estava disposta a mudar,
e ninguém muda comodamente. A gente só muda quando choca.
A senhora prevê alguma hostilidade
na sua volta ao Superior Tribunal de Justiça, no qual comprou
brigas?
Uma dessas brigas foi criticar a atuação de
filhos de ministros como advogados na corte. Esse problema resiste
no STJ. Antigamente os filhos de ministros viviam como funcionários
públicos. Quando nós combatemos o nepotismo e achamos que tínhamos realizado uma grande
coisa, combatemos um problema e o outro ficou. Não se pode impedir que
filhos de ministros advoguem. O grande problema é o fato de eles usarem
seu nome para fazer cooptação de clientela. Eles dizem ao cliente que
têm influência no tribunal porque são filhos de ministros. No meu gabinete,
eles não têm vez nem para marcar audiência. Nem filho de ministro nem
ministro aposentado atuando, que é outra coisa imprópria mas
existe. O ministro se aposenta e vai fazer lobby no tribunal. Nós
precisamos acabar com essa prática, não dando chance de aproximação.
Por que essa prática resiste, apesar
de ser imprópria?
Muitas vezes esses filhos de ministros não têm nem
procuração nos autos. Eles não fazem sustentação oral, não fazem nada, só acompanham
outros advogados para facilitar o acesso. Entram apenas para dar a impressão ao
cliente de que realmente têm chance de ganhar, não por ter o direito, mas por
influência. Em alguns gabinetes, dizem que isso funciona. Vende-se a ideia de
que filho de ministro faz milagres. Faz milagres porque é mais inteligente?
Não, é porque, se não der jeito, vai fazer safadeza. É a advocacia de
lobby, que não se sustenta pelas razões jurídicas, mas pelas razões extrajurídicas,
de amizade, de afeto, de relacionamentos.
Qual é a consequência mais
visível desse tipo de situação?
Em primeiro lugar, isso desacredita a Justiça. Além do mais,
é uma absoluta injustiça para com os advogados que são
sérios, trabalhadores e vão à tribuna defender o direito. A advocacia de
lobby causa um mal enorme e precisa ser banida, é um horror. É obrigatório acabar
com isso. Cabe aos próprios ministros coibir essa prática. Isso só
depende de nós. Basta perguntar ao ""advogado” que chega ao
gabinete se ele tem procuração nos autos. Se não tem, o ministro tem de
dizer: "O senhor ponha-se daqui para fora".
Sua visibilidade fez
surgir rumores de que poderia sair candidata a algum cargo
político. Isso está nos seus planos?
Já me convidaram para ser candidata a senadora pelo
Distrito Federal, mas não vou me meter em política de maneira nenhuma.
Também não vou advogar. De dinheiro eu não vou precisar, porque tenho uma vida modesta e a minha aposentadoria certamente
será suficiente. Penso em mais tarde, quem sabe, participar de uma entidade de
combate à corrupção ou me dedicar aos livros de culinária.
Fonte: Clipping– Seleção de Notícias, Ministério do Planejamento
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