Rui Ramos
Quase de certeza que o referendo grego, seja qual
for o resultado, não será o fim da história da Grécia na zona do Euro. Nunca
nada na Europa foi simples, e não é agora que vai começar a ser.
Parece que há um novo jogo de salão na Europa:
votarias sim ou não, se fosses grego? Cara ou coroa? Dispenso a aposta. Não sou
grego, mas acima de tudo, não acredito, ao contrário de tantos dos meus
contemporâneos, nas virtudes da última golpada de Tsipras para pôr termo à
incerteza e à deriva destes últimos meses. O referendo de hoje na Grécia pôs
demasiada gente num estado apocalíptico. É como se, finalmente, tudo se fosse
resolver. Desculpem mais uma vez o meu ceticismo, mas desconfio que não. É esse
o primeiro aviso que talvez convenha fazer por causa da Grécia.
Tsipras é manhoso. Pede um voto no “não”, mas
para, diz ele, poder assinar logo a seguir um acordo vantajoso com os credores
europeus. De modo nenhum está a propor a saída do euro. O seu ministro da
Economia argumentava esta semana que mesmo que os outros países o desejassem,
ninguém pode forçar a Grécia a sair da zona do Euro. Nem previsto nos tratados
europeus. E alguns economistas têm de facto admitido que talvez seja possível
que, mesmo com o Estado e os bancos falidos e já sem euros, a Grécia se possa
aguentar teoricamente dentro do Euro. Foi provavelmente prevendo esse
desenlace, que Donald Tusk, o presidente do Conselho Europeu, dizia ontem
que talvez a zona Euro tivesse de se habituar à ideia de contar com um Estado
em bancarrota. Wolfgang Schauble, o ministro das finanças alemão,
acrescentou enigmaticamente que, se a Grécia ficar sem euros, será apenas
“temporariamente”. O que é que isto quer dizer? Quase de certeza que o
referendo, seja qual for o resultado, não será o fim da história da Grécia na
zona do Euro. Nunca nada na Europa foi simples, e não é agora que vai começar a
ser.
Da mesma maneira, este referendo pode também não
ser o fim da história do Syriza no governo da Grécia. Varoufakis já prometeu
demitir-se se ganhar o “sim”. Mas Tsipras ainda não explicou o que fará. Também
se demite? Continua? A questão, muito provavelmente, depende menos de Tsipras
do que da oposição. Há na Grécia a alternativa de governo que não havia em
Janeiro, quando o Syriza ganhou? Imaginem que Tsipras perde, mas com o “não”
como preferência de mais de 40% dos votantes. Tsipras vai certamente
reivindicar esse resultado como só seu, enquanto o “sim”, embora maioritário,
será um património a dividir entre vários partidos e tendências. Tsipras poderá
assim tentar imitar o Partido Nacionalista Escocês, que perdeu o referendo da
independência o ano passado, mas conseguiu fazer do “sim”, embora minoritário,
a base eleitoral com que, este ano, passou a dominar completamente a política
na Escócia. É verdade: a Escócia não estava falida como a Grécia. Talvez
Tsipras, que pôs os gregos em fila nas caixas automáticas, esteja
condenado. Mas nunca devemos subestimar um demagogo cínico e sem escrúpulos,
como ele.
O segundo aviso diz respeito ao que está em causa.
Muito naturalmente, a maior parte da imprensa e dos comentadores aproveitou a
Grécia como um cabide para pendurar todas as suas ansiedades e todos os seus
sonhos. Pouca gente se dispôs a admitir que o referendo incidia apenas sobre um
suposto acordo entre a Grécia e os seus credores, com repercussões incertas
para a permanência da Grécia no Euro e para integração europeia. Parece
ser muito mais excitante imaginar que tudo está em causa: não apenas o
Euro e a União Europeia, mas também a soberania das nações, a democracia na Europa,
o equilíbrio geopolítico com a Rússia, o Estado social, a economia de mercado,
enfim, a civilização ocidental, toda a história da humanidade, o mundo.
O clamor à volta deste referendo será
provavelmente um documento inestimável para historiadores futuros: nada os fará
perceber melhor o auto-centramento dos europeus do nosso tempo, esta bizarra
ilusão de que tudo depende da vontade de cada um, e que todos podemos, se nos
apetecer, brincar à história. Mas a Grécia, só por si, não é necessariamente o
fim nem o começo de nada. A soberania nacional assenta no crédito nacional, não
na ajuda financeira de outros países. A democracia não é a possibilidade de,
votando, conseguirmos tudo: é apenas a possibilidade de votar. O Estado social
e a economia de mercado não são a negação um do outro, mas mais provavelmente a
possibilidade um do outro. E finalmente, se quiserem olhar para um sítio onde a
soberania nacional, a democracia e os equilíbrios geopolíticos estão em causa,
não olhem para a Grécia, mas para a Ucrânia, que demasiados europeus parecem
dispostos a entregar à rapacidade de Putin.
Há, finalmente, um terceiro aviso, para consumo
doméstico. É este: as eleições portuguesas deste ano não vão ser disputadas na
Grécia. De um lado e do outro da nossa política doméstica, muita gente parece
convencida de que são os eleitores gregos, e não os eleitores portugueses, quem
há de eleger o próximo governo de Portugal. O Syriza perde (mas ninguém sabe
como é que o Syriza pode perder), e a atual coligação governamental ganha,
porque fica provado que não havia alternativa à “austeridade”. O Syriza ganha
(mas ninguém sabe ao certo como é que o Syriza pode ganhar), e a atual
coligação governamental perde, porque fica provado que, afinal, havia a tal
alternativa.
É como se a Grécia fosse o nosso laboratório. Não
é. E com isto, não estou a argumentar que os acontecimentos gregos não possam
ter repercussões diretas ou indiretas, e criar um ambiente mais favorável a
este ou àquele concorrente às nossas eleições. O que estou a dizer é que,
aconteça o que acontecer, tudo será provavelmente tão complicado, tão incerto
durante tanto tempo, que nada dispensará os nossos políticos de nos tentarem
persuadir por eles próprios, sem ajudas gregas, e nada nos dispensará a nós de
pensarmos um pouco no que queremos, independentemente do que querem ou não
querem os gregos. Há mais mundos.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
5-7-2015
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