Alexandre Homem Cristo
É mau quando os princípios
ficam na dependência de interesses económicos. Mas é tão mau como quando ficam
sujeitos a lirismo revolucionário. Ver o primeiro é importante. Não ver o
segundo é hipocrisia
Não é segredo para ninguém que
o regime angolano vive emprenhado em corrupção, que persegue e reprime os seus
opositores, e que asfixia a economia com um apertado controlo estatal. Nem que,
nos últimos meses, essa repressão se intensificou, com uma série de prisões
políticas. Por isso, um grupo de intelectuais e académicos redigiu uma carta aberta (publicada em
vários jornais europeus) pedindo a investidores e governantes que, nas suas
relações com Angola, vejam para além dos interesses económicos e coloquem os
princípios à frente. Percebo e simpatizo com a iniciativa, embora discorde da
ideia de que os estados democráticos não devem negociar com estados
autocráticos ou tiranias – mas isso é tema para um outro artigo. O que não
percebo e não me causa simpatia é que estas cartas abertas e indignações
bem-intencionadas só surjam em relação a certas tiranias, havendo outras que,
sendo igualmente inimigas das liberdades mais básicas, recolhem compreensão e
aplauso entre as elites.
Veja-se o caso da Rússia. O
regime de Putin está inundado em corrupção, oprime todo o tipo de manifestação
de oposição política, prende críticos do regime (quando não têm o azar de, por
coincidência, encontrarem a morte numa viela), e persegue os homossexuais. No
entanto, quando Tsipras foi a Moscovo reforçar laços políticos com Putin (uma
espécie de vassalagem) e chantagear a União Europeia (que, apesar dos seus
defeitos, é um dos maiores garantes de paz e liberdade no mundo), não houve
cartas abertas de intelectuais indignados. Mas houve aplausos.
Ou, então, veja-se o caso da
Venezuela. Tal como Chávez, Maduro alimenta-se da corrupção, intimida
populações nos momentos de escrutínio eleitoral (Chávez chegou a ameaçar com
tanques nas ruas), impõe controlo social por via da violência, viola direitos
humanos e condena a sua população à escassez de bens de primeira necessidade. E
enquanto tudo isso acontece, o regime venezuelano é ainda um financiador, em Espanha,
do Podemos de Pablo Iglesias e, na Grécia, do Syriza de Tsipras, recebendo
louvas pela sua luta contra o capitalismo. Também aqui, não há cartas abertas
de intelectuais indignados. Só aplausos.
Poderia prosseguir na
enumeração de exemplos, que infelizmente não faltam, mas julgo que o ponto
ficou perceptível. Note-se que não quero diminuir a iniciativa dos académicos
que pretendem a libertação dos presos políticos em Angola, nem a crítica do meu
artigo lhes é dirigida. Aliás, junto-me a eles no apelo a que a comunidade
internacional condene todo o tipo de repressão política. Mas isso não é
sinónimo de dar força a ilusões. “Eticamente condenável” e “politicamente
perigoso” não é somente fechar os olhos à tirania de um país, mas sobretudo a
opção habitual de só ver tiranias onde convém, como fazem muitos dos jornais e
intelectuais que, pela Europa, publicaram ou partilharam esta carta aberta contra Angola. De facto, se as relações
internacionais fossem geridas em função deste tipo de indignações colectivas,
teríamos de incluir uma nova regra nos manuais da disciplina: as relações
externas com tiranias só são legítimas se estas forem de esquerda.
É caricato e tem o seu quê de
trágico. A partir do momento em que a nossa indignação para com inimigos da
liberdade é selectiva e está sujeita a critérios de conveniência política e
ideológica, já não são os direitos humanos que nos movem. É mau quando os
princípios ficam na dependência de interesses económicos? Sem dúvida. Mas é tão
mau como quando esses mesmos princípios ficam sujeitos ao lirismo
revolucionário. Ver o primeiro é importante. Não ver o segundo será sempre uma
hipocrisia.
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