José Manuel Fernandes
Queria agradecer a Augusto
Santos Silva [foto]. Bem haja por nos recordar como se pode ser manipulador nos
argumentos e rasteiro na linguagem. Por nos lembrar como isso foi regra nos
seus anos de socratismo.
Todos os seres humanos gostam
de ter boas surpresas. Mas há seres humanos que nunca nos surpreendem. Nunca
nos fazem duvidar que fazem parte daquele grupo de gente para quem os fins
justificam os meios. Quaisquer meios, mesmo os golpes baixos.
Augusto Santos Silva, figura
central dos anos de chumbo do socratismo, fez o favor de nos recordar,
em texto no Diário de Notícias, como se pode ser baixo na política. Como
se pode tratar de atropelar tudo e todos em função de um poder (que, no caso,
se perdeu) e de um ego (que, no caso, não parece ter limites).
O que esteve, o que está em
causa é a polémica entre o antigo ministro socialista e o director de
informação da TVI, Sérgio Figueiredo. Não me interessa, não creio ser útil,
entrar nos detalhes da controvérsia. Basta recordar que a TVI decidiu dispensar
os comentários de Augusto Santos Silva, substituindo-o na antena por outro
socialista, Fernando Medina, e que aquele andava há semanas a fazer acusações
de censura à televisão de Queluz. Sérgio Figueiredo, que se manteve em silêncio
durante várias semanas, entendeu esclarecer o que se passou na sua mais recente coluna de opinião no mesmo
DN. O jornalista conta uma história longa, mas fácil de resumir: Augusto Santos
Silva (ASS) foi dispensado pela TVI não por qualquer vontade de calar as suas
opiniões, mas por ser mal-criado. ASS fez-nos agora o favor de confirmar esse
julgamento. Quem pudesse duvidar do seu carácter e daquilo a que a minha
avozinha chamava “falta de chá em pequenino”, fica sem dúvidas.
E por aqui ficaríamos não
fosse todo este episódio muito revelador. E não nos tivesse este texto
recordado o tipo de práticas políticas autoritárias que caracterizaram o consulado
socrático, de que ASS foi um dos expoentes, porventura um dos arquitectos ao
integrar o núcleo político dos seus governos. Como essa tinha não
desaparece facilmente, como ainda não nos curámos de todos os males que o
estilo de fazer política causou ao país e à sua cultura democrática, vale a
pena perder algum tempo com a diatribe de Santos Silva.
E começa por valer a pena pois
ela não é apenas arrogante e desproporcionada: é também um exercício de
manipulação, um exercício bem típico do que fazia o nosso dia-a-dia no tempo em
que ASS foi passando por quatro ministérios diferentes (sim, é verdade: custa a
crer, mas ele foi, sucessivamente, ministro da Educação, da Cultura, dos
Assuntos Parlamentares e da Defesa, um verdadeiro político todo-o-terreno).
Apenas um exemplo, para
mostrar o estilo deste nosso “animal político”. A certa altura, ASS cita Sérgio
Figueiredo: “no mesmo dia em que [Santos Silva] reagia […] aceitando conversar,
decidiu fazer um comentário público na sua página do Facebook”. A partir desta
citação, transforma “o mesmo dia” num “depois”, discorrendo a seguir sobre
horas de mails e de post no Facebook. Tudo para concluir: Sérgio
Figueiredo é “mentiroso”. Porquê? Por algo que Sérgio Figueiredo não escreveu
mas ASS sugere que escreveu.
Esta forma de procurar
distorcer a verdade manipulando ou descontextualizando frases era uma das
especialidades dos “spin doctors” do socratismo. ASS não a esqueceu nem a
desmerece. O que Sérgio Figueiredo contestava era a forma de actuação do
político, que trouxe para a praça pública do Facebook, com acusações e ataques,
uma discussão que esse mesmo político começara em mails privados. A boa
educação recomendaria que aí se mantivesse até que as partes esclarecessem o
que tivessem a esclarecer. Santos Silva preferiu antes passar ao ataque,
cinicamente alegando que o fazia em legítima defesa. Assumidamente considerando
que, mesmo antes de qualquer ruptura, nenhuma lealdade era devida para a
estação que o convidara para colaborador e lhe dava palco.
A desfaçatez com que o faz é
tal que nem lhe ocorre que basta ler o texto atentamente para perceber que
Sérgio Figueiredo nunca o acusa daquilo que se diz vítima, isto é, de ter
colocado um post no Facebook “depois” da sua resposta ao mail de ASS, apenas de
ter feito isso no “mesmo dia”. Mas é uma desfaçatez coerente com a forma como
ASS via a sua colaboração na TVI: aquilo era a sua rubrica. Dele. Só dele. Não
de Paulo Magalhães, que lhe fazia as perguntas e, assim, é reduzido à condição
de palhaço ou de capacho (não sei qual a pior). Muito menos era uma rubrica da
TVI. E, sendo dele, nenhum motivo de actualidade poderia alterar o seu
horário ou formato, mesmo sendo a TVI24 uma estação cuja razão de ser é… a
actualidade.
Não me surpreende esta forma
de pensar e actuar. Não devia surpreender ninguém: foi regra durante os seis
anos do quero, posso e mando em que ASS colaborou, esses anos que só
terminaram em 2011, com o país no estado que se conhece. E ainda me surpreende
menos porque conheço a má relação que Augusto Santos Silva tem com a liberdade
de informação e a autonomia dos jornalistas. Já tive de lidar com ela, vivia-a
na pela, tal como muitos outros jornalistas.
Não esqueço, por exemplo, que
enquanto foi ministro da Educação se opôs tão ferozmente ao acesso da imprensa
aos rankings das escolas que, mesmo depois de uma deliberação da comissão que
regula o acesso ao dados da administração pública, decidiu desobedecer-lhe
(esse acesso só foi possível porque António Guterres o substituiu, em boa hora, como ministro da Educação).
Também não me esqueço da tenebrosa proposta de alteração do Estatuto do
Jornalista, uma proposta que violaria grosseiramente direitos de informação e
sigilo profissional, uma proposta que na sua versão mais gravosa só não foi por
diante porque o Presidente da República a vetou. Na altura escrevi que esse estatuto “configurava um dos mais
violentos ataques à liberdade de informação em Portugal desde o 25 de Abril” e
voltaria a escrevê-lo se necessário.
Há quem não tenha memória –
mas eu tenho. Por isso também me recordo de um jantar onde Francisco Pinto
Balsemão, dirigindo-se directamente ao ministro, que estava presente, considerou toda a legislação que ele estava a preparar
configurava uma “flagrante e constante insistência em proibir, travar, limitar,
burocratizar, impedir a adaptação e o aproveitamento, pelas empresas e pelos
profissionais, da revolução em curso”, isto é, da revolução digital. Como não
me esqueço que o seu objectivo, enquanto ministro, era acabar com “o jornalismo
de sarjeta”, como se isso fosse missão do poder político, como se disso não
pudessem resultar as mais indiscriminadas formas de censura.
Mesmo assim há algo que
aprecio em Augusto Santos Silva – a ausência de disfarces. Ao terminar o seu
texto, escreve que “não faltam servos e cúmplices ao tiranete, quando está no
topo”, o que faz com conhecimento de causa, pois tem disso experiência e
honra. Mais: fá-lo com substância ao mostrar como, em Portugal, continua a
haver políticos que acham que os jornalistas só podem estar ao seu serviço, que
a verdade é apenas aquela que lhes convém e que a melhor atitude é ser como um
animal feroz. Bem haja por isso. Bem haja por nos refrescar a memória. Bem haja
por nos ajudar a perceber que o passado está sempre desejoso de regressar.
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