sexta-feira, 15 de novembro de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Cama de gato

Aparecido Raimundo de Souza

LIGARAM DA LOJA de artigos para pesca procurando pelo Mário Tamiflu. Atendeu a tia dele, dona Francisca Tamiflu, uma solteirona que não tinha papas na língua, nem aguentava desaforos, quando via que a conversa não lhe agradava.
— Bom dia. Por favor, madame, seu Mário Tamiflu?
— O Mário não mora aqui. É a tia dele que está falando. Em que posso ser útil?
— Qual seu nome, por obséquio?
— Francisca Tamiflu. E o seu?
— Raid. Sou o supervisor de vendas.
— Do que se trata seu Raid?
— Aqui é da Accamem.
— Da água... Água o quê?
— Accamem.

— Tá legal, não importa. O que o senhor deseja com meu sobrinho?
— Comercializamos com toda linha de produtos para pesca, senhora.
— E daí? Onde é que meu sobrinho entra nisso?
— Seu Mário Tamiflu, senhora, esteve ontem com Jeremias, um de meus vendedores e fez uma comprinha generosa aqui na nossa loja...
— E o que ele comprou de tão... Tão generoso?
— Bem, senhora. Praticamente quase tudo para uma boa pescaria. Do barco ao...
— Credo! Não sabia que o Mariozinho gostava de pescarias. Desde pequeno sempre detestou peixes. Só de olhar para o mar enjoava. Mas não importa. Qual o seu problema com ele, seu Raid?

O sujeito do outro lado pigarreou.
— Desculpe senhora. Nenhum. Coisinha boba. É sobre uma vara que ele levou...
— O que tem a vara?
— Ele reclamou que era pequena. Na verdade seu Mário queria levar uma vara maior...
— Vara pequena, vara maior, meu senhor? Que brincadeira sem graça o prezado está fazendo comigo?
A tia começou a desconfiar da conversa. Achava que o sujeito tirava um sarro da sua cara. Quando dona Francisca desconfiava, virava bicho. E dos brabos.
— Desculpe estar incomodando a senhora madame dona Tamiflu. Seu filho...
— Sobrinho...

— Sobrinho, desculpe. Ele queria uma vara, perdão, uma varona dessas bem...
A mulher começou a se enfurecer:
— Escuta aqui, seu engraçadinho. Qual é a sua, afinal? Acaso o meu Mário apareceu ai na sua loja e lhe prendeu no armário junto com seu vendedor Jeremias, pegou essa tal vara e...
O cara do pigarro com essas palavras se desconcertou e se mostrou mais atacado que nunca. Voltou a se ver em sérios apuros com o incômodo e a tossir seguidas vezes. Todavia, insistente como uma mosca varejeira, quando conseguiu prosseguir...
— Desculpe senhora. Como falei seu sobrinho, ontem, fez uma compra...
— Estou careca de saber, seu Raid. O senhor já me passou essa informação. Quero entender direitinho que história é essa de vara pequena e vara maior... Que seu vendedor Jeremias...

— É exatamente sobre esse ponto que estou tentando explicar à senhora, dona Tamiflu.
— Explicar o quê?!
— Seu sobrinho... — Parou de novo para se livrar da maldita contração espasmódica — Seu sobrinho (pediu desculpas pela continuação do mal-estar) — Seu sobrinho levou uma varinha...
Dona Francisca, a estas alturas, espumava de raiva. Resolveu antes de mandar o infeliz para os quintos, dar o troco. Aquele idiota iria sentir na pele a sua fúria incontida por tentar fazê-la de otária. Logo ela, uma cidadã que não admitia certas brincadeiras...
— Pelo que entendi até agora, seu Raid, a varinha que o seu vendedor enfiou em meu sobrinho era dessas miudinhas?

— Bem, senhora na falta de coisa melhor, quero dizer, na falta do que seu sobrinho necessitava meu vendedor, repetindo, o vendedor Jeremias, enfiou em seu sobrinho uma dessas varinhas pequenas e compridas e... Ele queria uma varona...
— Aí apareceu a sua mãe e ele, mais que depressa pegou a varinha e crau, nela?
A série de pigarros que se ouviu após essas palavras se tornou insuportável e indescritível. O sujeito, de repente, parecia ter se engasgado com a própria indisposição que o atormentava. Tentou se controlar. Teve sorte. Após breves e tormentosos momentos reatou o diálogo, não sem antes voltar a pedir mil e uma desculpas pelo incidente.
— Senhora... Tamiflu. Me perdoe...

Dona Francisca aquiesceu condescendente. Resolveu ser generosa. Brincar um pouco mais. Ver até onde chegaria a lengalenga do despudorado sem vergonha. Mandou bala.
— Seu Raid, o senhor fuma?
— Demais, senhora. Consumo quatro carteiras por dia. Estou tentando parar... Diminuí para três. Voltando à vara que seu sobrinho levou, ontem, do meu vendedor, madame...
Dona Francisca saltou do sofá e quase derrubou o telefone. Para não sair dos braços da educação e mandar aquele palhaço para os cafundós do capiroto, se agarrou à postura de antes.

O desgranhento queria, de fato, torrar as medidas. Os limites de sua paciência chegavam à linha do intolerável. Explodiu retumbante:
— Senhor Raid, saiba que o meu sobrinho é homem com agá maiúsculo. Macho para chuchu. Entendeu? Quer saber mais? Pegue as suas varinhas e varonas e atoche tudo bem direitinho no seu fiofozinho... E no de seu amigo ai, o tal Jeremias. Boa tarde. Passar bem!
Bateu com força o telefone no ouvido do engraçadinho.
Vinte minutos depois o aparelho voltou a dar sinais de vida. A velhota atendeu. Uma voz de locutor se fez ouvir:

— Boa tarde, senhora. Por favor, seu Tamiflu... Mil desculpas, madame. Seu Mário Tamiflu se encontra?
— Sou a tia dele. O que foi desta vez? Mais varinhas e varões?
— Perdão, senhora. Não entendi. A sua graça, por gentileza?
— Francisca... Francisca Tamiflu.
— Dona Francisca, meu nome é Perrota. Pristonal Perrota. Seu sobrinho, senhor Mário nos encomendou não varas, porém, percevejos... Na verdade, para ser exato trinta mil percevejos...
— Por acaso o senhor é da água... Agua, ou acca... Alguma coisa?
— Não senhora, eu sou gerente da Pulp. Minha empresa só negocia percevejos. Essa é a primeira vez que ligo para seu número...

— Percevejos? Essas coisas se vendem?
— Assim como tem gente que compra senhora. O problema nosso, nesse exato momento, é que seu Mário Tamiflu nos fez uma encomenda de trinta mil percevejos e...
Dona Francisca não mandava recados. Era direta, certeira. Bastava que lhe tirassem do estado de tranquilidade. E como já andava fora de controle, desde a hora em que o Raid lhe enchera as medidas com as tais varas, a qualquer momento se transformaria numa metralhadora giratória e mandaria balas para tudo quanto é lado. O copo andava prestes a entornar. Sem contar que se encontrava para lá de Bagdá fazia tempo.

— Seu Cerrota, vamos direito ao ponto.  O senhor conseguiu quantos desses percevejos até agora?
— Senhora Tamiflu, perdão, Perrota. Meu nome é Pristonal Perrota. Só temos em estoque dez mil para entrega imediata...
— E os outros vinte?
— Numa semana estarão em suas mãos, ou melhor, nas de seu sobrinho. Pode ficar tranquila...
— Faça o seguinte...
— Pois não, senhora...
— Mande esses dez mil que o senhor tem aí..

O gerente ficou deveras satisfeito. O contentamento foi tanto que o pigarro atacou o gogó da criatura com uma ferocidade espantosa.  Quando se refez... abriu a boca em mesuras e reverências:
— Perfeito. OK. A senhora me daria evidentemente esse prazinho para estar despachando o restante?
— Não exatamente...
— Não estou conseguindo acompanhar seu raciocínio. Em uma semana...
— Esquece o prazinho, seu Merrota... Eu explico a razão...
— Meu Cristo! Perrota, senhora. Perdão. Meu nome é Pristonal Perrota. Como disse seu criado... Gerente da Pulp.
— E eu, por meu turno, o que vou lhe dizer, na verdade, seu Berrota é muito mais simples ainda. Esquece o prazinho de uma semana. O restante dos percevejos o senhor não precisa enviar. Enfia um por um no delicado narizinho da senhora sua mãe...
Com essas palavras dona Francisca deu por encerrada a ligação.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital. 15-11-2019

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