A verdadeira ciência é feita com humildade,
cautela, perguntas incômodas e a constante tentativa de refutar a tese
principal, justamente para verificar sua robustez
Rodrigo Constantino
Uma falácia lógica muito comum
é assumir que dois eventos que ocorrem em sequência cronológica estão
necessariamente interligados por meio de uma relação de causa e efeito. O galo
canta antes do nascer do sol, mas este não nasce porque o galo cantou.
Infelizmente, a arte de manipular dados vem ganhando cada vez mais terreno, com
efeitos nefastos para a sociedade. A estatística não pode ser a “refinada
técnica de torturar os números até que eles confessem”.
“Uma das primeiras coisas
ensinadas na introdução à estatística é que correlação não é causalidade. É
também uma das primeiras coisas esquecidas e um dos fatos mais amplamente
ignorados na pesquisa de políticas públicas”, lamentou Thomas Sowell certa vez.
Lembrei desse alerta ao ler o editorial do Estadão da última
quinta-feira tentando explicar a queda de mortes com covid no Brasil, atribuída
automaticamente à vacinação maior.
Diz o jornal: “Nesta semana, o
Brasil registrou queda recorde na média de casos diários de covid-19. Na
terça-feira passada, foi notificada uma média de 48.954 casos da doença, o que
representa uma redução de 37% em relação ao registro feito nos 14 dias
anteriores. A notícia é alentadora, pois, além de se tratar de uma queda
recorde, coroa uma sequência de reduções nos registros que apontam para uma
queda consistente do número de casos da doença no país”.
Até aí, apenas o fato. Mas eis que surge de forma categórica a explicação, a suposta análise: “A queda consistente do número de casos e a desaceleração da transmissão viral estão diretamente relacionadas com o avanço da vacinação da população”. Como pode o jornal afirmar isso? Qual a ciência por trás disso? A resposta sincera: nenhuma.
Os dados são jogados como
prova: “Hoje, cerca de 78,5 milhões de brasileiros (37,06% da população) já
tomaram a primeira dose da vacina. Destes, 27,8 milhões (13,13%) já estão
totalmente imunizados, vale dizer, já tomaram as duas doses ou a dose única,
caso da vacina Janssen”. Mas jornalismo sério e ciência honesta se fazem com
perguntas incômodas. Como o jornal explicaria, então, o surto de casos e mortes
em países como Uruguai e Chile, que tinham na ocasião uma taxa de vacinação bem
maior do que essa?
Quem quer afirmar que o lockdown foi um sucesso vai
ignorar todas as evidências contrárias
O viés de confirmação é a
grande armadilha aqui: quem quer “provar” algo previamente concebido acaba
buscando os dados que fortaleçam essa crença, deixando de lado aqueles que a
prejudicam. O Texas retirou todas as restrições, inclusive uso de máscara e
distanciamento social, quando tinha vacinado menos de 15% de sua população. O
doutor Fauci e o presidente Joe Biden alertaram para o risco, condenando a
medida do governador republicano. O resultado? Um sucesso! A narrativa em
seguida atribuiu o bom resultado à vacina, não obstante.
Isso é ideologia, não ciência.
Quando citam o Reino Unido como exemplo favorável do lockdown,
ignoram que os resultados britânicos foram ruins ainda com o lockdown,
ignoram que na Suécia houve um resultado similar sem lockdown, e
ignoram que em outros países, como a Argentina, com rigoroso lockdown,
os números foram terríveis. Mas nada disso importa: quem quer afirmar que
o lockdown foi um sucesso vai ignorar todas as evidências contrárias,
além de jamais analisar honestamente o custo de oportunidade, ou seja, os
efeitos indiretos da medida drástica, como o desastre econômico, por exemplo.
O mesmo vale para o tratamento
imediato. Nunca houve uma politização tão abjeta da medicina. Jornalistas
repetem que os remédios tiveram sua ineficácia comprovada cientificamente, o
que é uma declaração absurda do ponto de vista da ciência. Para tanto, eles
ignoram vários estudos favoráveis, e confundem a ausência de uma comprovação
definitiva com o teste padrão ouro com uma prova de ineficiência. Isso é
politicagem, não ciência.
Alguns ainda mencionam
“estudos” repletos de inconsistências ou picaretagens, como aquele fatídico
estudo em Manaus com a cloroquina, que resultou na morte de mais de 20 pessoas.
A Gazeta do Povo fez uma reportagem investigativa mostrando o
drama das famílias, que denunciam a superdosagem criminosa do experimento, mas
a repercussão foi tímida na imprensa. Vale lembrar que a repercussão do
“estudo” em si foi enorme, alcançou o mundo todo, e a mídia o tratou como prova
da ineficácia do remédio “bolsonarista”.
A pior coisa nessa pandemia,
depois das mortes, claro, foi a politização exacerbada da ciência. O uso que
muitos ignorantes têm feito do nome da ciência em vão, para seus fins
políticos, é assustador. Especialmente quando vem de jornalistas, que deveriam
se manter mais céticos e humildes. E são exatamente esses que têm bancado os
maiores especialistas do planeta, tentando ensinar o papa a rezar a missa.
Poderiam aprender com sir Karl
Popper, que sabia alguma coisa sobre método científico: “Não importa quantos
cisnes brancos você veja ao longo da vida. Isso nunca lhe dará certeza de que
cisnes negros não existem”. Foi o poeta Yeats que capturou a essência do
problema: “Os melhores carecem de toda convicção, enquanto os piores estão
cheios de intensidade apaixonada”. Bertrand Russell foi na mesma linha: “O
problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de
dúvidas, e os idiotas estão cheios de certezas”.
A verdadeira ciência é feita
com humildade, cautela, perguntas incômodas e a constante tentativa de refutar
a tese principal, justamente para verificar sua robustez. Temos visto o oposto
disso: ignorantes afirmando verdades absolutas, desprezando dados contrários,
impedindo perguntas complexas e fazendo de tudo para confirmar suas narrativas
prévias. Quem quer creditar a vacina pela queda de óbitos, por exemplo, vai
apontar para o aumento na vacinação concomitantemente à redução de mortes, e
ponto-final.
Quem respeita a ciência,
porém, vai além, com as questões ainda sem resposta. Correlação não é
causalidade. A curva de óbitos per capita é similar em muitos
países com taxas bem distintas de vacinação, eis o fato incômodo para certas
narrativas. Políticos e jornalistas com uma agenda preferem ignorar o fato. Mas
ele persiste. Se o mérito é da vacina, como se explicam o Chile e o Uruguai? E
como se explica o Texas? Talvez as tais variantes expliquem parte dos
resultados? Talvez a própria qualidade das vacinas?
Quando se observa a coisa por
um prisma mais complexo, fica claro que a humildade é necessária, e que as
afirmações categóricas em nome da ciência não passam de tremendo embuste.
Título e Texto: Rodrigo Constantino, revista Oeste, nº 68, 9-7-2021
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