sexta-feira, 9 de julho de 2021

Correlação e causalidade

A verdadeira ciência é feita com humildade, cautela, perguntas incômodas e a constante tentativa de refutar a tese principal, justamente para verificar sua robustez


Rodrigo Constantino

Uma falácia lógica muito comum é assumir que dois eventos que ocorrem em sequência cronológica estão necessariamente interligados por meio de uma relação de causa e efeito. O galo canta antes do nascer do sol, mas este não nasce porque o galo cantou. Infelizmente, a arte de manipular dados vem ganhando cada vez mais terreno, com efeitos nefastos para a sociedade. A estatística não pode ser a “refinada técnica de torturar os números até que eles confessem”.

“Uma das primeiras coisas ensinadas na introdução à estatística é que correlação não é causalidade. É também uma das primeiras coisas esquecidas e um dos fatos mais amplamente ignorados na pesquisa de políticas públicas”, lamentou Thomas Sowell certa vez. Lembrei desse alerta ao ler o editorial do Estadão da última quinta-feira tentando explicar a queda de mortes com covid no Brasil, atribuída automaticamente à vacinação maior.

Diz o jornal: “Nesta semana, o Brasil registrou queda recorde na média de casos diários de covid-19. Na terça-feira passada, foi notificada uma média de 48.954 casos da doença, o que representa uma redução de 37% em relação ao registro feito nos 14 dias anteriores. A notícia é alentadora, pois, além de se tratar de uma queda recorde, coroa uma sequência de reduções nos registros que apontam para uma queda consistente do número de casos da doença no país”.

Até aí, apenas o fato. Mas eis que surge de forma categórica a explicação, a suposta análise: “A queda consistente do número de casos e a desaceleração da transmissão viral estão diretamente relacionadas com o avanço da vacinação da população”. Como pode o jornal afirmar isso? Qual a ciência por trás disso? A resposta sincera: nenhuma.

Os dados são jogados como prova: “Hoje, cerca de 78,5 milhões de brasileiros (37,06% da população) já tomaram a primeira dose da vacina. Destes, 27,8 milhões (13,13%) já estão totalmente imunizados, vale dizer, já tomaram as duas doses ou a dose única, caso da vacina Janssen”. Mas jornalismo sério e ciência honesta se fazem com perguntas incômodas. Como o jornal explicaria, então, o surto de casos e mortes em países como Uruguai e Chile, que tinham na ocasião uma taxa de vacinação bem maior do que essa?

Quem quer afirmar que o lockdown foi um sucesso vai ignorar todas as evidências contrárias

O viés de confirmação é a grande armadilha aqui: quem quer “provar” algo previamente concebido acaba buscando os dados que fortaleçam essa crença, deixando de lado aqueles que a prejudicam. O Texas retirou todas as restrições, inclusive uso de máscara e distanciamento social, quando tinha vacinado menos de 15% de sua população. O doutor Fauci e o presidente Joe Biden alertaram para o risco, condenando a medida do governador republicano. O resultado? Um sucesso! A narrativa em seguida atribuiu o bom resultado à vacina, não obstante.

Isso é ideologia, não ciência. Quando citam o Reino Unido como exemplo favorável do lockdown, ignoram que os resultados britânicos foram ruins ainda com o lockdown, ignoram que na Suécia houve um resultado similar sem lockdown, e ignoram que em outros países, como a Argentina, com rigoroso lockdown, os números foram terríveis. Mas nada disso importa: quem quer afirmar que o lockdown foi um sucesso vai ignorar todas as evidências contrárias, além de jamais analisar honestamente o custo de oportunidade, ou seja, os efeitos indiretos da medida drástica, como o desastre econômico, por exemplo.

O mesmo vale para o tratamento imediato. Nunca houve uma politização tão abjeta da medicina. Jornalistas repetem que os remédios tiveram sua ineficácia comprovada cientificamente, o que é uma declaração absurda do ponto de vista da ciência. Para tanto, eles ignoram vários estudos favoráveis, e confundem a ausência de uma comprovação definitiva com o teste padrão ouro com uma prova de ineficiência. Isso é politicagem, não ciência.

Alguns ainda mencionam “estudos” repletos de inconsistências ou picaretagens, como aquele fatídico estudo em Manaus com a cloroquina, que resultou na morte de mais de 20 pessoas. A Gazeta do Povo fez uma reportagem investigativa mostrando o drama das famílias, que denunciam a superdosagem criminosa do experimento, mas a repercussão foi tímida na imprensa. Vale lembrar que a repercussão do “estudo” em si foi enorme, alcançou o mundo todo, e a mídia o tratou como prova da ineficácia do remédio “bolsonarista”.

A pior coisa nessa pandemia, depois das mortes, claro, foi a politização exacerbada da ciência. O uso que muitos ignorantes têm feito do nome da ciência em vão, para seus fins políticos, é assustador. Especialmente quando vem de jornalistas, que deveriam se manter mais céticos e humildes. E são exatamente esses que têm bancado os maiores especialistas do planeta, tentando ensinar o papa a rezar a missa.

Poderiam aprender com sir Karl Popper, que sabia alguma coisa sobre método científico: “Não importa quantos cisnes brancos você veja ao longo da vida. Isso nunca lhe dará certeza de que cisnes negros não existem”. Foi o poeta Yeats que capturou a essência do problema: “Os melhores carecem de toda convicção, enquanto os piores estão cheios de intensidade apaixonada”. Bertrand Russell foi na mesma linha: “O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e os idiotas estão cheios de certezas”.

A verdadeira ciência é feita com humildade, cautela, perguntas incômodas e a constante tentativa de refutar a tese principal, justamente para verificar sua robustez. Temos visto o oposto disso: ignorantes afirmando verdades absolutas, desprezando dados contrários, impedindo perguntas complexas e fazendo de tudo para confirmar suas narrativas prévias. Quem quer creditar a vacina pela queda de óbitos, por exemplo, vai apontar para o aumento na vacinação concomitantemente à redução de mortes, e ponto-final.

Quem respeita a ciência, porém, vai além, com as questões ainda sem resposta. Correlação não é causalidade. A curva de óbitos per capita é similar em muitos países com taxas bem distintas de vacinação, eis o fato incômodo para certas narrativas. Políticos e jornalistas com uma agenda preferem ignorar o fato. Mas ele persiste. Se o mérito é da vacina, como se explicam o Chile e o Uruguai? E como se explica o Texas? Talvez as tais variantes expliquem parte dos resultados? Talvez a própria qualidade das vacinas?

Quando se observa a coisa por um prisma mais complexo, fica claro que a humildade é necessária, e que as afirmações categóricas em nome da ciência não passam de tremendo embuste.

Título e Texto: Rodrigo Constantino, revista Oeste, nº 68, 9-7-2021 

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