Manter as escolas fechadas é um crime social inédito na sua extensão, na sua violência e nos seus efeitos contra vítimas que não podem, e nunca puderam, se defender
J. R. Guzzo
Cabe à autoridade pública, em
condições normais de temperatura e pressão, interromper a prática de um crime
todas as vezes que esse crime estiver sendo praticado à sua vista, e à vista de
todos. É o que manda a lei; é para isso, entre outras coisas, que a autoridade
é paga, desfruta de licença-prêmio e tem aposentadoria com salário integral.
Mas no Brasil da covid não é assim que funciona. Em primeiro lugar, os que
cobram os seus impostos e, ao mesmo tempo, ganham o direito de mandar na sua
vida não acham que o crime é crime. Ao contrário, acham que é virtude; deve ser
praticado, e não interrompido. Em seguida, quando são forçados a perceber a
calamidade que estão fazendo, não se mexem. Quando se mexem, enfim, é para
anunciar que vão tentar — ou, pelo menos, que alguém vai tentar — fazer alguma
coisa a respeito. Mas não agora; em setembro, se for possível. Até lá, o crime
vai continuar sendo praticado e os criminosos vão continuar apitando o jogo.
As crianças e jovens de São Paulo, o maior, mais importante e mais rico Estado do Brasil, estão sem aulas desde março do ano passado; no momento, caminham para o segundo ano letivo perdido. Isso mesmo: dois anos seguidos sem escola, ou com uma mentira chamada “ensino a distância”, coisa sem paralelo em qualquer país civilizado do mundo — onde, ao contrário, manter as escolas abertas foi uma prioridade dos governos desde os primeiros casos de covid. É um crime social inédito na sua extensão, na sua violência e nos seus efeitos contra vítimas que não podem, e nunca puderam, se defender. São aqueles que precisam mais desesperadamente ir às aulas — as crianças pobres cuja única chance de sair da casinha à beira do Rodoanel e conseguir algum trabalho mais compensador, uma renda melhor e uma vida menos sofrida que a dos seus pais é ir todos os dias à escola e adquirir o máximo de conhecimento que for possível. Foram roubados de algo que não poderá mais ser devolvido.
O ensino “a distância”, “on-line”, virtual e outros disparates não
prejudicou a todos por igual
O crime continuado que mantém
as escolas com as suas salas vazias é obra de responsabilidade direta, em São
Paulo, do consórcio que se formou entre o sindicato dos professores, de um
lado, e o “Centro de Contingência” montado pelo governo estadual e povoado por
“cientistas”, médicos e burocratas, de outro. (No resto do Brasil, os autores
são comissariados equivalentes criados pelas “autoridades locais”.) Juntos, e
com o apoio integral de magistrados que há mais de um ano não vão ao fórum para
dar um único despacho, sequestraram dois anos da vida útil de milhões de
crianças — o que não aprenderam agora não poderá mais ser aprendido, não sem
prejuízo do que terão de aprender no futuro. Os “cientistas” e médicos que
gostam mais do Diário Oficial do que do microscópio ou da sala
de cirurgia dizem, como o sindicato, que haverá “reposição” das aulas perdidas.
De que jeito? Não foi dada até agora uma única explicação decente e respeito de
como essa “reposição” seria feita na vida real. Não é possível, simplesmente,
dar mais tarde as aulas que não foram dadas agora — a recuperação terá de
deixar de lado o currículo e socar em um ano, ou menos, o que deveria ter sido
aprendido em dois, ou mais.
É um desses escândalos
silenciosos tão ao gosto dos intelectuais, da elite e das classes “progressistas”
do Brasil — sempre prontas a sacrificar tudo pela “igualdade”, desde que isso
não interfira em seu estilo de vida e os sacrifícios, na prática, sejam feitos
pela pobrada cuja sorte dizem lamentar. Num país já arruinado com as desgraças
de uma concentração de renda estúpida, injustiças sociais especialmente
grosseiras e diferenças de oportunidade que transformam a democracia brasileira
numa piada gigante, o consórcio de “cientistas”, médicos e sindicato dos
professores pensou e agiu unicamente em defesa dos próprios interesses e pontos
de vista políticos. E as crianças, em cuja saúde se declaravam tão
interessados? As crianças — ou melhor, as crianças pobres — que vão para o
diabo que as carregue. O ensino “a distância”, “on-line”, virtual, não- “presencial”
e outros disparates não prejudicou a todos por igual. Prejudicou justamente
quem menos podia ser prejudicado.
Os alunos do Dante Alighieri,
e de todos esses colégios onde estudaram as autoridades locais e nos quais as
anuidades podem passar dos 100.000 reais, vão sobreviver. O ensino via
computador, para eles, foi feito com computadores top de
linha, internet de banda larga, professores particulares e outras amenidades
que o dinheiro dos pais pode pagar. A perda, para todos eles, será menor. Para
a molecada da Vila Quaquá, a história tem sido outra. Se muitos (a maioria?)
não têm nem o computador, que raio de ensino “eletrônico” podem ter? Além de
perderem as aulas, perderam até a merenda — para muita gente, a principal
refeição do dia. Seu desempenho nas avaliações vai desabar. É esperado que uma
parte considerável deles todos simplesmente não volte nunca mais à escola — vai
ser, aí, o prejuízo com perda total.
O importante, para o Brasil da covid, é acompanhar o que o senador
Renan Calheiros vai revelar amanhã na CPI
Com uma agressão tão perversa
aos direitos mais elementares da população pobre, algo sem igual na história da
injustiça no Brasil, tem sido tolerada com tão poucos escrúpulos pelos que
mandam no país — e pela aristocracia de Terceiro Mundo que vive à sua volta?
Eis aí, mais uma vez, o Brasil mostrando a sua cara — a sua cara como ela é,
hipócrita, egoísta e insensível, e não como aparece no palavrório dos
políticos, no circo da CPI ou no noticiário da mídia. Este é o Brasil onde uma
categoria profissional inteira, a dos professores da rede pública de ensino,
deu e pretende continuar dando um espetáculo mundial de covardia — na Europa
civilizada e igualitária que tanto admiram na hora de fazer seus discursos na
sala de aula, as escolas praticamente não fecharam. Pior: há mais de um ano
estão se aproveitando de uma tragédia inédita para tirar proveito pessoal e
obter vantagens políticas. Fazem exigências com caráter de chantagem — como a
de serem vacinados integralmente, seja qual for a sua idade, e como se fossem
melhores ou mais importantes que todos os outros brasileiros que também prestam
serviços essenciais. Tem sido um tempo de triunfo da falsidade — como o
argumento de que não poderiam voltar a dar aulas porque um professor morreu de
covid. Nunca mencionaram que a vítima não pegou a doença na escola, pois não
havia escola.
Não são apenas os professores
que estão fazendo essas coisas, é claro. Para começar, coloquem na mesma conta
a maior parte dos funcionários públicos — e os seus assemelhados. Há os pais
que não querem que seus filhos vão à escola porque estão com medo de que tragam
o vírus para casa. Fingem que estão pensando “nas crianças” — que não pegam
covid. Estão pensando em si próprios, isto sim. Há de tudo. Mas os professores
são um caso à parte. Numa sociedade tão doente como a do Brasil atual, a única
porta de saída efetiva para a pobreza é a melhoria da educação pública — não as
“bolsas família” e outros programas de esmola inventados pelos governos. Há
mais de um ano, com o “cancelamento” das escolas, o país faz exatamente o
contrário. “O aluno não está aprendendo o que aprenderia na escola, é preciso
deixar isso claro”, diz o secretário da Educação do Estado de São Paulo,
Rossieli Soares, um dos mais persistentes e corajosos advogados da volta às
aulas em todo o Brasil. O fechamento das escolas, que ele quer terminar em
setembro, é um atraso fatal, na sua opinião. “Isso é aumento da desigualdade
direto na veia”, disse Soares dias atrás numa entrevista a O Estado de
S. Paulo. “O discurso de ‘não voltar’ está prejudicando o aluno da rede
pública, o que mais precisa de escola. Acho que as próximas avaliações
nacionais vão ser um desastre; vai ficar muito claro o tamanho do buraco. Para
começar a recuperar, vamos ter de ensinar em um ano a matéria de dois ou três.”
Mas e daí — quem é que está
ligando para isso? Não a elite que governa e faz questão de pensar por todos.
As crianças e adolescentes que perderam e vão continuar perdendo a sua única e
estreita oportunidade de escapar da pobreza não fazem parte das suas
preocupações. Essa gente invisível, sob a indiferença mais completa das classes
intelectuais e iluminadas, está toda condenada desde hoje, em consequência do
ensino que lhe foi roubado, a levar vidas inteiras com os piores empregos, os
salários mais baixos, as tarefas mais cansativas, monótonas e desmotivadoras, o
trabalho duro, repetitivo e manual. Terão baixo acesso ao consumo — vão
continuar comprando os produtos de pior qualidade, mais obsoletos e mais
baratos. Não terão uma carreira, nem uma casa confortável, nem SUV, nem
nada disso que aparece nos comerciais de televisão — em que todas as coisas
caras e certas, como por milagre, são lindamente disponíveis para todos, e os
brasileiros negros são ricos, chiques e felizes. Os brasileiros de verdade não
vão ter vez, como não tiveram na tragédia das escolas fechadas. Eles não têm
voz; não aparecem na imprensa, jamais foram vistos por um publicitário e
ninguém nem sabe como eles se chamam. Não dão entrevistas nas páginas que
promovem a igualdade. Ninguém fala por eles. Em suma: não existem. O
importante, para o Brasil da covid, é acompanhar o que o senador Renan
Calheiros vai revelar amanhã na CPI, na luta comum da elite para “salvar
vidas”. Infelizmente, não vão salvar a vida de quem precisa ser salvo — os
jovens que estão recebendo hoje a confirmação de sua sentença de pobreza
vitalícia.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, nº 68, 9-7-2021
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