Durante décadas construímos uma civilização-casulo. Ou seja, um mundo suficientemente rico para pagar para que não o ataquem. Mas agora o nosso casulo foi brutalmente rasgado pela brutalidade de Putin
Helena Matos
De repente a pandemia acabou.
Os rostos que vemos na televisão têm lágrimas e não máscaras. Percebemos que
nos abrigos de Kiev a distância social não existe. E que os passaportes
voltaram a certificar nacionalidades e não vacinas contra a COVID. Mais
desconcertantemente ainda vemos as mulheres fugindo com os filhos e os homens,
entre os 18 e os 60 anos, ficando para trás pois a mobilização proíbe-os de
partir (o que será que a legislação sobre a identidade de género dirá sobre
esta óbvia discriminação?)… O mundo teima em existir para lá do nosso casulo,
não é? Em estraçalhar as verdades convenientes em que nos vamos embrulhando.
Durante décadas construímos
uma civilização-casulo. Ou seja, um mundo suficientemente rico para pagar a
outros para que não o ataquem.
Suficientemente acomodado para
ignorar o reverso das causas com que entretém o ócio e ilude o vazio deixado
pelo medo de enfrentar a realidade.
Suficientemente entorpecido
para ter feito do recuo a táctica que lhe permite lavar as mãos em todas as
situações.
Mas agora o nosso casulo foi
brutalmente rasgado pela brutalidade de Putin. E descobrimos perplexos que não
só não podemos escapar ao mundo que rodeia o nosso casulo, mas também que ele é
constituído por uma teia de meias verdades.
Por exemplo, como foi possível
termos levados os últimos anos a fechar centrais nucleares e a carvão na Europa
sabendo que isso aumentaria a dependência do gás russo? Ah claro íamos salvar o
planeta! Não interessa que não tenhamos instalada capacidade para produzir
energia de forma alternativa nem sequer que estas energias não sejam, pelo
menos por enquanto, uma alternativa: íamos ser os campeões do mundo da
transição energética fosse isso o que fosse! Ou mais precisamente transitámos
para uma dependência crescente do gás proveniente da Rússia!
Essa dependência estava aí à nossa frente, mas para que os riscos que ela representa se tornassem assunto de discussão foi necessário que Putin mandasse as suas tropas para Kiev. Na verdade, a intervenção russa na Geórgia em 2008 não impediu que dois anos depois começasse a ser construído o Nord Stream 1 para levar gás da Rússia para a Alemanha. E em maio de 2018 quando começou a ser construído o gasoduto Nord Stream 2 Putin já tinha anexado a Crimeia (2014) e nas zonas de Donetsk e Lugansk transformava em letra mais ou menos morta os Acordos de Minsk. Mesmo agora em 2022, se Putin se tivesse “limitado” a apoiar militarmente a criação das repúblicas de Donetsk e Lugansk, seria muito provavelmente o convidado de honra da cerimónia de inauguração do Nord Stream 2.
Tanta imprevidência nesta
Europa foi possível porque as reputações constroem-se a partir de discursos
sobre as intenções e não sobre os factos. O que contava era dizer que íamos
fechar centrais, ser verdes, amigos do planeta… podemos agora amaldiçoar Putin,
mas ele apenas se aproveitou das fragilidades a que nós mesmos nos conduzimos.
A cada sobressalto na nossa letargia interrogamo-nos sobre o nosso movimento
(sub-reptício, naturalmente) que pode ter desencadeado essa desordem à nossa
volta. O alargamento da NATO é a justificação mais óbvia, mas não só a Ucrânia
não faz parte da NATO como nem se vislumbrava que viesse a fazer. Era sobretudo
a UE que estava e está em causa. Putin está preparado para o jogo dos
equilíbrios militares com a NATO, o que era e é de facto desafiador do seu
poder é a possibilidade de ter no que considera sua área de influência países
que escapem à sua lógica de poder político.
Quero acreditar que esta
vontade de acreditar no que nos permite manter-nos no nosso casulo é a
manifestação do instinto de sobrevivência de uma sociedade envelhecida e
acomodada. Só assim se entende que ao mesmo tempo que tomamos consciência da
situação a que nos conduziu a dependência do gás russo façamos tudo por ignorar
essa outra dependência em que nos vamos enredando. Falo naturalmente da China e
muito particularmente do controlo que empresas chinesas exercem em importantes
terminais de portos europeu. Já aconteceu no Pireu, Antuérpia, Roterdão,
Valência e Bilbao. Será que não devemos prestar mais atenção aos interesses em
torno do porto de Sines? Que outras razões não existissem há que ter em conta
que os navios que transportam gás alternativo ao proveniente da Rússia têm de
aportar a algum lado!
Mas a tentação de voltar para
o casulo é grande, não é?
Por fim, uma pergunta e uma
aposta: desde quando se tornou óbvio que Putin ia levar a cabo uma intervenção
na Ucrânia e que não se tratava apenas de um blefe? Eu aposto no dia 8 de
fevereiro. O dia em que o iate Graceful, propriedade de Vladimir Putin, deixou
precipitadamente o estaleiro em que estava em Hamburgo, na Alemanha, para se
dirigir para o enclave russo de Kaliningrado.
O que também gostava de saber,
mas nem ouso apostar é se Putin também fez contas ao tempo em que os europeus
aceitarão sem protestos o impacto que as sanções à Rússia vai ter nos seus
rendimentos e na recuperação da sua economia. Mais cedo ou mais tarde a
nostalgia do casulo vai chegar.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
27-2-2022
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