Aparecido Raimundo de Souza
Gyula, hoje, com vinte e dois
anos, trabalha com o pai na escola da localidade onde moram, a pacata Rosa das
Montanhas, não na mesma função dele, mas na secretaria, estando a seus cuidados
praticamente todos os serviços burocráticos de uma tumultuada escola de 1° e 2°
graus. O rapaz é um respeitado cidadão. Todos o adoram e estimam. Desde a
diretora ao porteiro. Os alunos, nem tem comparação, são um caso à parte. Por
ser querido e honesto, foi nomeado recentemente pelo secretário de educação e
pelo prefeito, em solenidade que contou com várias autoridades locais ao cargo
de presidente do COAJA.
COAJA nada mais é que CONSELHO
DE APOIO AOS JOVENS E ADOLESCENTES, uma pasta que visa entre outras coisas, dar
assistência irrestrita (não só às crianças da escola) como, igualmente, aos
meninos e meninas de rua na idade de oito a dezessete anos, período considerado
crítico pelos especialistas em estudos voltados para menores carentes
abandonados à sorte. Gyula está nessa atribuição ha três anos e vem mostrando
que não ficou restrito somente aos deveres desse ofício, ao contrário,
implantou idéias novas.
Desenvolveu perspectivas que
deixaram pasmos e de queixos caídos não só o criador original do projeto de lei
como todos os vereadores da Câmara Municipal, notadamente aqueles que na época
de sua indicação votaram contra a designação de seu nome. Todavia, Gyula foi
preso e autuado em flagrante pelo delegado José Galo Silveira, da polícia
civil, que abriu inquérito e, neste momento o rapaz está respondendo um
processo no fórum local. Descobriu-se, após sérias investigações, que não se
tratava de nenhuma jovem.
Uma jovem? Que jovem?! Vamos tentar explicar o fato pormenorizadamente. Abrindo aspas. “Enquanto os dias passavam, os pneus dos carros, ônibus e tudo que usasse rodas, na linda e acolhedora Rosa das Montanhas, iam sendo furados e os números, a cada noite, praticamente triplicavam. Em vista disso, o delegado José Galo Silveira, botou no chilindró o Peçanha, proprietário da maior borracharia da cidade mas, concluiu, a posteriori, não ser ele o vilão das estranhas investidas dos esvaziamentos de pneus. Furioso por ter ido parar na cadeia e dormido algumas noites no cimento frio, Peçanha acionou um advogado vindo da capital e entrou com uma ação de indenização e perdas e danos...
Está às voltas de, em breve,
abrir uma rede de borracharias maior que a de seus outros concorrentes com o
dinheiro que pretende embolsar com a milionária retratação. Assim como ele,
outros do mesmo ramo, como o Luiz dos Pneus, o Eurico do Roda Bem, e o Bozó dos
Pneus Papa Léguas, foram detidos, porém, logo em seguida liberados, pois não
foram encontrados indícios de estarem envolvidos com as séries das evacuações
dos “pneumáticos” após o horário que fechavam os respectivos pontos comerciais
e se recolhiam aos seus familiares. Mas, afinal, quem seria o maluco e astuto
furador de pneus que aterrorizava a serena cidadezinha interiorana?
Os donos dessas empresas acima
citadas, tinham filhos e filhas. E dai? Daí que o elemento desafeiçoado às
rodas, surgia das cinzas, de onde menos se esperava e, por noite, a média dos
“giradores” furados passava de duzentos. O delegado José Galo Silveira (nesta
altura motivo de piadas dos moradores, comentavam, à língua solta, que ele não
sabia “onde o galo cantava”) montou um esquema em conjunto com os policiais
militares das cidades adjacentes e, finalmente, chegaram a conclusão de que se
tratava de uma mulher jovem e muito bem apessoada...
Na verdade, uma loira, alta,
magra, de gestos rápidos e ágeis. Uma gata arisca e muito esperta. Usava
perfume Chanel Número 5, que exalava longe. Deixava uns bilhetinhos lacônicos
escritos em guardanapos de papel, com desenhos de coraçõezinhos e marcas de
batom em formas de beijos. Por conta dos proprietários das lojas de pneus da
cidade que tinham filhas, entraram na mira do delegado. Todavia, em face de
nada ser esclarecido, os cidadãos supostamente envolvidos (e por terem filhas
mulheres) se viram embrulhados num inquérito aberto para a apuração dos
inusitados transtornos que abalavam a população.
Nesses pés sem sapatos, sem
fios soltos, e no que ter como se agarrar de concreto, além de nove meses de
cerrada vigilância e determinação, a criança nasceu. O delegado, José Galo
finalmente pilhou a incauta princesa com a boca na botija. Foi no exato momento
em que ela se preparava para furar os pneus de dois ônibus de turismo no pátio
do hotel que vieram da capital trazer vários grupos de jornalistas e fotógrafos
que cobririam a festa da padroeira de São José, que aconteceria em breve e
daria inicio a uma semana de festejos com a chegada de muita gente vinda de
todos os recantos.
Dada a voz de prisão e sem
saída, a moça, por fim, se quedou vencida. Algemada, colocaram-na num camburão
e rumaram para a delegacia. Embora fosse quase meia noite, a notícia de que
haviam pego a tal “fulaninha” desordeira, correu rápida e praticamente toda a
cidade se levantou e acorreu para a frente da casa onde funcionava o distrito.
Quem seria, afinal, a tal criatura? De onde viera? Por quê essa mania doentia,
essa tara anormal por esvaziar os pneus dos automóveis?
Um reboliço dos diabos. A
imprensa que viera de fora, de repente pintou no pedaço e passou a transmitir
ao vivo. Até a ZWV3 Difusora, a rádio local que saia do ar a meia noite em
ponto, passou a ver quatro e voltou com toda força, propagando a notícia em
edição extraordinária. Esquema idêntico deu o editor chefe do jornal “O Grito
dos Excluídos”, que mandou acordar os repórteres para se postarem nas barbas da
chefatura. Em meio a toda a balbúrdia formada, a primeira surpresa foi a do
delegado José Galo Silveira, na hora que fazia o auto do flagrante, junto com o
escrivão, no cartório contíguo a única cela que comumente vivia vazia de
delinquentes.
A moça, de moça, não tinha
nada. Era falsa da cabeça aos pés. Sem a peruca e despojada de toda a maquiagem
que cobria o rosto, o delegado se viu frente a frente com Gyula, presidente do
COAJA. Fechando aspas”. O espanto maior, entretanto, coube ao juiz Dagoberto
Massada, diretor do fórum local. Gyula namorava em casa, de aliança de
compromisso no dedo Melissa Massada, a mais velha de suas três filhas.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo. 1-3-2022
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