terça-feira, 1 de março de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Atividade paralela

Aparecido Raimundo de Souza

GYULA TEM NOME de origem húngara mas nunca esteve nesse país, nem é filho ou consanguíneo de alguém oriundo dessas paragens. Seus pais são brasileiros da cidade de Leme, interior de São Paulo e o nome do primeiro filho da família Oliveira se deu ao fato do pai Gilberto, professor de literatura da rede pública estadual gostar dos livros de Krúdy. E também dos textos de Sándor Márai, outro renomado húngaro que morreu em 1989.

Gyula, hoje, com vinte e dois anos, trabalha com o pai na escola da localidade onde moram, a pacata Rosa das Montanhas, não na mesma função dele, mas na secretaria, estando a seus cuidados praticamente todos os serviços burocráticos de uma tumultuada escola de 1° e 2° graus. O rapaz é um respeitado cidadão. Todos o adoram e estimam. Desde a diretora ao porteiro. Os alunos, nem tem comparação, são um caso à parte. Por ser querido e honesto, foi nomeado recentemente pelo secretário de educação e pelo prefeito, em solenidade que contou com várias autoridades locais ao cargo de presidente do COAJA.

COAJA nada mais é que CONSELHO DE APOIO AOS JOVENS E ADOLESCENTES, uma pasta que visa entre outras coisas, dar assistência irrestrita (não só às crianças da escola) como, igualmente, aos meninos e meninas de rua na idade de oito a dezessete anos, período considerado crítico pelos especialistas em estudos voltados para menores carentes abandonados à sorte. Gyula está nessa atribuição ha três anos e vem mostrando que não ficou restrito somente aos deveres desse ofício, ao contrário, implantou idéias novas.

Desenvolveu perspectivas que deixaram pasmos e de queixos caídos não só o criador original do projeto de lei como todos os vereadores da Câmara Municipal, notadamente aqueles que na época de sua indicação votaram contra a designação de seu nome. Todavia, Gyula foi preso e autuado em flagrante pelo delegado José Galo Silveira, da polícia civil, que abriu inquérito e, neste momento o rapaz está respondendo um processo no fórum local. Descobriu-se, após sérias investigações, que não se tratava de nenhuma jovem.

Uma jovem? Que jovem?! Vamos tentar explicar o fato pormenorizadamente. Abrindo aspas. “Enquanto os dias passavam, os pneus dos carros, ônibus e tudo que usasse rodas, na linda e acolhedora Rosa das Montanhas, iam sendo furados e os números, a cada noite, praticamente triplicavam. Em vista disso, o delegado José Galo Silveira, botou no chilindró o Peçanha, proprietário da maior borracharia da cidade mas, concluiu, a posteriori, não ser ele o vilão das estranhas investidas dos esvaziamentos de pneus. Furioso por ter ido parar na cadeia e dormido algumas noites no cimento frio, Peçanha acionou um advogado vindo da capital e entrou com uma ação de indenização e perdas e danos...

Está às voltas de, em breve, abrir uma rede de borracharias maior que a de seus outros concorrentes com o dinheiro que pretende embolsar com a milionária retratação. Assim como ele, outros do mesmo ramo, como o Luiz dos Pneus, o Eurico do Roda Bem, e o Bozó dos Pneus Papa Léguas, foram detidos, porém, logo em seguida liberados, pois não foram encontrados indícios de estarem envolvidos com as séries das evacuações dos “pneumáticos” após o horário que fechavam os respectivos pontos comerciais e se recolhiam aos seus familiares. Mas, afinal, quem seria o maluco e astuto furador de pneus que aterrorizava a serena cidadezinha interiorana?

Os donos dessas empresas acima citadas, tinham filhos e filhas. E dai? Daí que o elemento desafeiçoado às rodas, surgia das cinzas, de onde menos se esperava e, por noite, a média dos “giradores” furados passava de duzentos. O delegado José Galo Silveira (nesta altura motivo de piadas dos moradores, comentavam, à língua solta, que ele não sabia “onde o galo cantava”) montou um esquema em conjunto com os policiais militares das cidades adjacentes e, finalmente, chegaram a conclusão de que se tratava de uma mulher jovem e muito bem apessoada...

Na verdade, uma loira, alta, magra, de gestos rápidos e ágeis. Uma gata arisca e muito esperta. Usava perfume Chanel Número 5, que exalava longe. Deixava uns bilhetinhos lacônicos escritos em guardanapos de papel, com desenhos de coraçõezinhos e marcas de batom em formas de beijos. Por conta dos proprietários das lojas de pneus da cidade que tinham filhas, entraram na mira do delegado. Todavia, em face de nada ser esclarecido, os cidadãos supostamente envolvidos (e por terem filhas mulheres) se viram embrulhados num inquérito aberto para a apuração dos inusitados transtornos que abalavam a população.

Nesses pés sem sapatos, sem fios soltos, e no que ter como se agarrar de concreto, além de nove meses de cerrada vigilância e determinação, a criança nasceu. O delegado, José Galo finalmente pilhou a incauta princesa com a boca na botija. Foi no exato momento em que ela se preparava para furar os pneus de dois ônibus de turismo no pátio do hotel que vieram da capital trazer vários grupos de jornalistas e fotógrafos que cobririam a festa da padroeira de São José, que aconteceria em breve e daria inicio a uma semana de festejos com a chegada de muita gente vinda de todos os recantos.

Dada a voz de prisão e sem saída, a moça, por fim, se quedou vencida. Algemada, colocaram-na num camburão e rumaram para a delegacia. Embora fosse quase meia noite, a notícia de que haviam pego a tal “fulaninha” desordeira, correu rápida e praticamente toda a cidade se levantou e acorreu para a frente da casa onde funcionava o distrito. Quem seria, afinal, a tal criatura? De onde viera? Por quê essa mania doentia, essa tara anormal por esvaziar os pneus dos automóveis?

Um reboliço dos diabos. A imprensa que viera de fora, de repente pintou no pedaço e passou a transmitir ao vivo. Até a ZWV3 Difusora, a rádio local que saia do ar a meia noite em ponto, passou a ver quatro e voltou com toda força, propagando a notícia em edição extraordinária. Esquema idêntico deu o editor chefe do jornal “O Grito dos Excluídos”, que mandou acordar os repórteres para se postarem nas barbas da chefatura. Em meio a toda a balbúrdia formada, a primeira surpresa foi a do delegado José Galo Silveira, na hora que fazia o auto do flagrante, junto com o escrivão, no cartório contíguo a única cela que comumente vivia vazia de delinquentes.

A moça, de moça, não tinha nada. Era falsa da cabeça aos pés. Sem a peruca e despojada de toda a maquiagem que cobria o rosto, o delegado se viu frente a frente com Gyula, presidente do COAJA. Fechando aspas”. O espanto maior, entretanto, coube ao juiz Dagoberto Massada, diretor do fórum local. Gyula namorava em casa, de aliança de compromisso no dedo Melissa Massada, a mais velha de suas três filhas.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo. 1-3-2022 

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