domingo, 3 de julho de 2022

[As danações de Carina] Coração é bicho besta

Carina Bratt

‘O amor, quando não é verdadeiro ou correspondido como deve ser um amor de verdade, certamente estaremos a meio caminho andado para acabarmos com os burros n’água’.
Tompson de Panasco – pensador de rua.

UM

NO QUARTO ESCURO, ela se abraçou a ele. Beijou-o com sofreguidão. Trocaram carícias plenas. Disseram palavras ininteligíveis. Fizeram amor como nunca daquela noite. Ficaria para sempre, aquele momento mágico, guardado no inesquecível do coração em festa. Na manhã seguinte, ao acordar, percebeu que estava sozinha. A cama vazia, o lençol amarrotado. Os travesseiros pelo assoalho espalhados. Havia pequenos respingos de sangue. Sangue? Deixara de ser virgem, se fizera mulher. Como? Por tudo que se fazia e entendia como sagrado: de que maneira? Morava sozinha, só ela e Deus, na quitinete pequena...


A única porta se fazia chaveada. Vasculhou, atenta. A cadeira antiga, de compleição pesada, encostada com um balde de água até a boca, encimado, como um guardião (caso alguém tentasse forçar a entrada vindo de fora), teria se movido e se despejado pelo chão e molhado todos os cantos da sala. Como tudo aconteceu? De que maneira, os travesseiros, o lençol? Não havia ninguém ali. Somente ela e a solidão. A solidão e ela. Ninguém mais. O choro convulso da descoberta, de repente escorreu pelo seu rosto. Pingou seguidamente num dorido pranto sentido e lhe fez voltar correndo à realidade brutal de uma noite que não passou de um sonho.

DOIS

Bastava olhar as cartas de amor recebidas, e por ele escritas, o seu peito arfava. Se sentava na beira da cama, compenetrada, e então lia e relia trocentas vezes. Beijava as folhas, cheirava os envelopes, fazia tais gestos com carinho e afeto. O coração, nessas horas, acelerava os batimentos. Seu ‘eu’ interior —, todo ele se abria numa felicidade envolvente. O ‘Amor’ confiável e puro, pelo seu ‘Amor’, desenhava diante de seus olhos a figura de um homem perdidamente apaixonado. Um ser diferente de tudo aquilo que idealizava nas longas noites que passava se revirando sobre a cama fria e vazia de carinho, degredada do calor abrasante que ele transmitia, quando se fazia ao lado dela, literalmente presente.

Sem ele ali deitado ao seu lado, o corpo inteiramente nu —, a masculinidade no meio das pernas em repouso fingido... sem seu respirar compassado, o rosto sereno, aberto às dádivas e carícias, como o de um anjo adormecido, tudo fazia dela uma criança solitária, sem o brilho mavioso da euforia e da completude de uma infância que se afigurava distante. Sem ele, seu ser oculto se pegava olvidado da sua presença máscula, se avistava destituído da ternura de suas mãos procurando atalhos e reentrâncias, curvas e depressões, o que fazia o seu imaginário viajar por espaços desconhecidos e trilhar por sendas e veredas incólumes.

Em tais horas, as cartas escritas por ele simplesmente refletiam um longínquo distante e divorciado. Traziam, à baila, um amor mal resolvido —, um gostar meio que insensato, que deixava espinhos machucando as suas mãos repletadas de uma ausência que a cada minuto se fazia mais distante e pesada. Dele, as cartas, o cheiro do perfume impregnado nos papeis, atrelados à maldita ausência, faziam dela, uma pessoa triste, melancólica. Um ser desprezível, uma criatura mal resolvida. Quem sabe, se jogasse os papéis fora, se os queimasse, o seu mundo voltasse ao normal... se deixasse de pensar em seu corpo colado ao dele, o sexo aflorando, querendo se soltar... uma luz de alerta se acendesse indicando um novo caminho a ser seguido e trilhado...

TRÊS

Se entregou de corpo e alma ao amor. Ao amor errado, ao amor bandido, a bem da verdade, ao amor insano que todos diziam e aconselhavam, ‘saia fora, abra os olhos enquanto é tempo’. De nada adiantaram os conselhos. Amou demais. Amou e perdeu por esse amor, a razão, o tino, a cautela, o juízo, a prudência, o resguardo de sua própria sensibilidade de moça recatada. Se embrenhou por um destino incerto, se fez infeliz, desprezada, desencantada; se mortificou por atalhos longes e distanciados dos seus reais horizontes. Não contente, esfacelou o seu hoje pacato, se desfez dos parentes mais chegados. Se viu sozinha...

De contrapeso, arrebentou seus sonhos contra as pedras do incerto. Devastou seus horizontes sem pensar no amanhã. Desolou seus sonhos e, por fim, se fez solitária ao redor de si mesma. Quem gostava um tantinho assim da sua vida e valorizava a sua presença, hoje queria distância dela. Tudo em nome de um amor que não lhe dava retorno, pelo contrário, lhe trazia, a cada novo amanhecer, amarguras e momentos de infelicidades e desgraças, fracassos e adversidades.

EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA

Em razão de tudo o que aqui escrevi, nas minhas ‘Danações’, deste mês que se inicia, quero deixar claro e bem sintetizado que o coração (o nosso coração) é um trocinho meio aloucado que não pensa. O coração, amigas, é grosso modo, um bicho ‘Maria Vai Com As Outras’, um pedaço de nós que nos faz sofrer as agruras e os dissabores de uma vida infeliz. Fiquemos, pois, espertas e atentas. Carecemos buscar a Felicidade onde, de fato, ela se faz inatingível e pura, resguardada e robusta, sobretudo, livre e desimpedida de presságios inclementes e ferinos, adoentados e fulminantes. Se o nosso coração não pensa, nós precisamos nos policiar, para não sofrermos, na carne, do desagradável ‘MAL DO AMOR’.

Título e Texto: Carina Bratt. Da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 3-7-2022

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4 comentários:

  1. Ainda velho, não consigo entender o que coração tem a ver com amor e o que amor tem a ver com sexo. Quando vejo casais com 40 anos de casamento ainda unidos, isso é amor no meu pensamento, agora o sexo pode até ser impossível, depende da saúde deles. Nosso escravo da vida, o coração não tem sentimentos. Nossas emoções cerebrais afetam-no terrivelmente. Como pode uma emoção temporal ser confundida com sexo? Sexo é feromônios e tato, sem sentir no olfato os feromônios nunca haverá sexo, e sem o "roçarroça" nas genitálias não haverá orgasmos. Sexo é mecânico, amor um sentimento temporal "pusillanimis, , com sentido de diminuto, muito pequeno”, que anima apenas o sentido da “interior” do indivíduo, com um recorde mundial de transformar-se em ódio.
    AMAI OS TEUS COMO A TI MESMO.

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  2. Carina, seus textos, a cada dia mais me encantam e me surpreendem. Estou apaixonado por eles. Vou acabar pedindo um à dona, em casamento. Casa, comida, roupa lavada e cobertor de orelha. Se você vier junto, melhor. Vamos lá: você fala do amor de três formas diferentes. Ou melhor dito, eu entendi o seu "Coração é Bicho Besta", como se vivido por três personagens diferentes. Não sei se essa foi a sua ideia original. Ou se um personagem só, ao qual você não deu nome, se enquadrou nos três relatos. Eu acho que não. Foram, no meu entendimento, três fatos vistos por óticas diferentes. Não importa. Ao final, me rendo. Bem bolado. Discordo do seu simpático e carismático leitor Vanderlei Rocha, que assevera "não conseguir entender o que coração tem a ver com amor". No sentido "Psiquiatricocardiológicofulésticol", o coração, de fato, nada tem a ver com o amor. O coração não ama. Não faz sexo. Logo, quando vemos ai pelas cidades EU (CORAÇÃO) RIO DE JANEIRO, ou EU (CORAÇÃO) SÃO PAULO, fico meio que bestificado. O coração não ama. O coração é um músculo cabuloso, chato, não gosta de brincadeiras, grosso modo, o danado é uma bomba. Ao mesmo tempo que é o mais importante músculo do corpo humano, num piscar de olhos ele pode parar de bater, explodir e deixar seu dono vendo estrelas. Todavia, no sentido literário, amável e amoroso, o Coração é a forma das pessoas dizerem EU (CORAÇÃO) TE AMO, ou EU (CORAÇÃO) MINHA DOCE AMADA. Feio seria, pense, ao invés do Coração a figura vermelha de um Seio, de um Peito, ou credo em cruz, de um Pinto, e a frase batida... EU (PINTO) TE AMO, ou EU (SEIO) TE QUERO MUITO, ou ainda, EU (PEITO) TE QUERO PRA SEMPRE NA MINHA VIDA. Imagine, a gente no bem bom e eu tascar um EU (PINTO) VOCÊ, CARINA. Mais viável, de fato, o (CORAÇÃO) como uma forma carinhosa de mostrar a nossa Felicidade interior. Depois de tanta bobagem escrita, na verdade só queria deixar um elogio: CA, CONTINUE ASSIM. VOCÊ A CADA DIA, DENTRO DE MEU (CORAÇÃO) MAIS ME SURPREENDE.
    Aparecido Raimundo de Souza da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.

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  3. "O coração, amigas, é grosso modo, um bicho ‘Maria Vai Com As Outras’, um pedaço de nós que nos faz sofrer as agruras e os dissabores de uma vida infeliz. Fiquemos, pois, espertas e atentas. Carecemos buscar a Felicidade onde, de fato, ela se faz inatingível e pura" .
    Parabéns, Carina! Fiz até print do texto para guardar. Uma história fictícia que representa a realidade de milhões de corações femininos iludidos. E, no fim, um belo conselho para a vida real. Um abraço para vc e outro para o Aparecido. (Barbara)

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  4. Agora apareceu minha foto. Que loucura!
    Aparecido Raimundo de Souza
    Lagoa Rio de Janeiro

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