segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Quanto falta para o Tribunal fechar jornais e queimar livros?

A censura voltou e quer ficar. Como nos piores momentos da humanidade, com a cumplicidade de parte da população – e dos jornalistas

Flavio Morgenstern

Imagine a seguinte notícia: “Presidente manda fechar jornal e queimar livros de um escritor”. Chocante? Parece só ocorrer em uma ditadura? Nos termos atuais, seria “antidemocrático”? Mas que tal “Presidente manda derrubar perfis de donos de jornal (incluindo os de seus amigos) alegando fake news e desinformação”? Tudo isso dentro de inquéritos secretos, com a desculpa de evitar, justamente, “atos antidemocráticos”.

Reparou que agora todo mundo elogia o mesmo fato? Melhor ainda se trocar “presidente” por “juiz indicado por ex-presidente”. Abracadabra! Segredo da mágica revelado.

Há uma ironia na sociedade de informação: o tráfego constante de dados, na verdade, ajuda também a alienar, facilitando apagar, censurar e esconder dados sensíveis que não se quer que o público veja.

O sociólogo Georg Simmel já havia notado o fenômeno ainda no século XIX: o acúmulo de informações, principalmente no meio urbano, causa uma apatia e insensibilidade – após um tempo, o indivíduo não reage mais adequadamente, seja com indignação ou esperança, raiva ou medo, ao noticiário. A notícia da eclosão de uma guerra global e uma fofoca sobre uma subcelebridade geram o mesmo efeito: nenhum.

É o que acontece quando testemunhamos tantas notícias sobre censura. Uma rápida pesquisa apresenta manchetes como “TSE proíbe Bolsonaro de usar imagens do 7 de setembro”, “TSE proíbe Bolsonaro de usar discurso na ONU”, “TSE proíbe realização de lives no Alvorada”, “TSE proíbe uso de imagens de Bolsonaro no funeral da rainha”, “TSE proíbe pronunciamento público de Queiroga que elogiaria combate à COVID”, “TSE manda Bolsonaro e sites apagarem que Marcola vai votar em Lula”, “TSE censura Gazeta do Povo em post sobre o apoio de Lula a Ortega”, “TSE manda excluir vídeo da Jovem Pan associando Lula ao caso Celso Daniel”, “Coligação de Lula pede ao TSE nova censura à Gazeta do Povo”, “TSE manda Brasil Paralelo retirar do ar vídeo com críticas a Lula”, “TSE proíbe propaganda de Bolsonaro que chama Lula de ‘ladrão’”, “PT pede nova censura contra Gazeta e quer impedir cobertura sobre Lula e Ortega”.

Pouco importa que imagens públicas não possam ser proibidas. Que discursos públicos, além de públicos (!), sejam comumente utilizados como peças publicitárias em todo o mundo (* exceto na Coréia do Norte, onde não são necessários). Nem que Dilma usasse o Alvorada para dar entrevistas para equipes de reportagem, ou que um pronunciamento sobre vacinação interesse à população (dane-se se o ano é eleitoral).

Não interessa ainda que tenha sido uma adversária de Bolsonaro que tenha feito uma ligação entre Celso Daniel e Lula, e que Lula e Daniel Ortega tenham mesmo trocado elogios, muito menos que Lula tenha sido condenado em três instâncias por corrupção e tenha sido preso. Ironia suprema, não importa que o próprio TSE afirme que o material da Brasil Paralelo seja verdadeiro, mas, enfim, pega mal. A decisão envolveu até explicar o que a Brasil Paralelo deveria ter dito. Talvez o primeiro caso de censura por true news no mundo.

Censura. Censura. Censura. Censura. Censura. Censura. Censura. Censura. Censura. Censura. Censura. Censura. Censura.

É possível lembrar de todas as proibições? Não são casos distendidos por anos, mas apenas notícias das últimas semanas. Depois da terceira (ou quinta, ou sétima…) em um mês, o efeito não é mais de indignação. Não há mais a sensação de inquietação diante de uma injustiça, como no dia em que foi revelado o áudio do “Bessias”, que fez o povo tomar as ruas após o trabalho sem convocação nenhuma. Tudo vira mero desdém. Uma indiferença beirando a preguiça. A normalização da desambição – o que garante o poder dos piores políticos do Brasil e nossa kafkiana passividade.

Adicione-se a esta indolência frígida um requinte de crueldade. A nova censura é plenamente defendida por… jornalistas. A contradição é apenas aparente: boa parte do jornalismo hoje não é mais investigativo, informativo ou mesmo opinativo: é quase uma agitação partidária. É criação de turbas enfurecidas – quando não de Adélios Bispos. Quando se trata do consórcio da grande mídia, o jornalismo é usado mesmo como fonte do Direito, como se fossem constitucionalistas sem concorrência: não é preciso lei, e sim notas midiáticas, mesmo sem provas. O poder de um jornalista do consórcio da grande e velha mídia é muito maior do que o da maioria dos deputados. E é este o seu objetivo: legitimizar a censura de seus colegas no poder.

Para acalmar aqueles que ainda formam silogismos e preocupam-se com lógica elementar em tempos de identitarismo, progressismo e relativismo, a manobra é fácil: não é preciso noticiar que um jornal foi censurado. Menos ainda que se pediu para fechar um jornal. Para se calar uma pessoa.

A ágora moderna, ainda mais pós-pandemia, é controlada por redes sociais com donos. Não é preciso se preocupar com quem grita contra o governo sobre um caixote na praça pública – nem mesmo em usar tanques e polícia política para fechar jornais (embora isto tenha se tornado rotina nos inquéritos inconstitucionais – e, portanto, ilegais e antidemocráticos). Basta ordenar que redes apaguem perfis e posts.

O 10 de maio de 1933 ficou marcado como o início das infames Bücherverbrennungen, as queimas de livros “inimigos do regime” após a subida de Hitler ao poder. As imagens até hoje são usadas no imaginário popular como exemplo do perigo do totalitarismo e do Partido-Estado: de como a censura é o único meio para a uniformização completa da sociedade, marca do socialismo internacional e do nacional-socialismo.

Os censores 2.0 não precisam se preocupar. Ao invés de botar fogo na Biblioteca de Alexandria, basta exigir das redes que não exibam determinado conteúdo. Não é preciso queimar fisicamente nada, não pega mal, a história não usará como exemplo de censura tirânica. Basta desaparecer dos feeds – que, numa era de hiperinformação, não exibirão um buraco vazio: estarão ocupados com mais de 87 mil tweets e 18 milhões de mensagens de texto por minuto, e em meia hora todos esquecerão do censurado.

Tudo é feito com um vocabulário cuidadosamente burilado: não se está “censurando”, está se “combatendo fake news”. Ainda que verdadeiras, mas, enfim, que pegam mal. É o “combate à desinformação”. Afinal, quem deve definir os sentimentos é o nosso Ministério da Verdade – ou alguma sigla de algum tribunal em Brasília (tanto faz, os dois são basicamente das mesmas pessoas).

É pela democracia. É contra as “milícias digitais”. E se alguém discorda, está “atacando” as instituições (exceto, claro, a presidência: esta, se for chamada de “genocida” e acusada de ser “miliciana”, faz parte da liberdade de expressão e da democracia).

Com uma leve mudança no vocabulário, em pouco tempo contemplaremos um desfile de jornalistas elogiando as posturas do tribunal “em defesa da democracia, contra as milícias digitais e a desinformação”. Logo choverão comentários exigindo uma regulação da internet contra as fake news – e nenhuma preocupação com a classificação como fake de fatos verdadeiros.

Imagine-se, afinal, a ditadura militar dizendo que estava “combatendo fake news e desinformação” ao fechar jornais. Ou os nazistas. O que faltou foi só um vocabulário mais caprichado, um marketing com jornalistas e acadêmicos – quem liga para um termo como “subversivo” hoje?

Após uma intensa campanha repetida goebbelsianamente que o risco à democracia não é usar dinheiro de empreiteira para comprar deputado, e sim tia-avó que mal sabe usar a internet passando notícia “descontextualizada” no WhatsApp, fica fácil apagar desafetos virtualmente – e quem se informa impressamente hoje? – e ainda ser tratado como uma muralha democrática.

Quem domina o meio – a mídia ou a plataforma de redes sociais – domina o fim. Basta lembrar que o Brasil acompanhou ditaduras como Azerbaijão, Bahrain, Irã, Paquistão, Tailândia – e, claro, China – em banir o aplicativo de troca de mensagens Telegram – tudo para que ninguém tivesse contato com o jornalista Alan dos Santos. Só voltou quando derrubou os ditos canais “bolsonaristas” – provando que o tribunal tem leis diferentes para cada espectro político. Ainda passou a “monitorar” os 50 canais mais vistos do país – a maior parte conservadores. Até agora, continuamos tratando como “normal” – mais um dia comum no país da lei relativa e da censura recreativa.

TSE, que é proibido pela Constituição de investigar, também determinou a desmonetização de canais conservadores. O STF, que tem membros em comum com o TSE, determinou também o apagamento das redes sociais de Alan dos Santos reiteradas vezes, além da juíza Ludmila Lins Grilo, inclusive de seus cursos.

Stalin constantemente apagava a história das fotos e da “versão documental” da burocracia oficial. Hoje, o apagamento virtual – a versão jurídica do “cancelamento”, ou da “vaporização” de que George Orwell expõe em 1984 – faz o que a ditadura militar, ou mesmo os nazistas, nunca conseguiram: ganhar aplausos jornalísticos – ser cúmplice é mais confortável do que ser vítima.

Não é preciso mais uma Bücherverbrennung para se livrar dos inimigos do regime. Não é preciso mais queimar livros. Basta apagar toneladas de informação virtualmente – e ninguém vai chamar de censura.

Título e Texto: Flavio Morgenstern, Revista Oeste, 16-10-2022, 19h45

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