terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

A ditadura das Big Techs

Chegou a hora de defender a liberdade na internet

Dagomir Marquezi

Muito além dos jornais, do rádio e da televisão, a grande revolução universal da imprensa aconteceu em 1989, com o surgimento de um sistema de comunicação entre computadores chamado WWW (ou Rede Mundial). A internet foi o único veículo de comunicação nascido para ser inteiramente livre.

“Se a tecnologia tivesse um proprietário e estivesse sob meu controle total, provavelmente não teria decolado”, afirmou o britânico Tim Berners-Lee, principal criador da rede, ao resumir a proposta desse novo veículo. “Você não pode propor que algo seja um espaço universal e ao mesmo tempo manter o controle sobre ele.”

A internet parecia um milagre. E era. O mesmo Tim Berners-Lee [foto] ajudou a fundar uma comunidade internacional chamada W3C, devotada a desenvolver as bases éticas e operacionais da WWW. Entre os fatores que fizeram a rede nascer livre, estava a descentralização: “Nenhuma permissão de uma autoridade central para postar qualquer coisa na web é necessária, não há nenhum nó central de controle e, portanto, nenhum ponto único de falha… E nenhum ‘botão de desligar’! Isso também implica estar livre de censura e vigilância indiscriminadas”. 

Outro princípio defendido pela W3C era a universalidade. “Para que qualquer pessoa possa publicar qualquer coisa na web, todos os computadores envolvidos devem falar a mesma linguagem entre si, independentemente do hardware que as pessoas estejam usando; do local onde moram; das crenças culturais e políticas que têm”, afirmava o documento. “Dessa forma, a web quebra as barreiras e ainda permite que a diversidade floresça.”

A perda da inocência

A internet se transformou então num milagre da evolução humana. Todas as barreiras que dividiam os povos começaram a desabar como numa daquelas canções ingênuas de John Lennon. Os cidadãos não precisavam mais de intermediários. Cada um publicaria seu próprio jornal, teria a própria emissora de rádio e estação de vídeo. E atingiria milhões, dezenas, centenas de milhões de seres humanos.

As pessoas, não importava qual a distância entre elas e que língua falassem, podiam se comunicar umas com as outras e se reunir em comunidades virtuais. Foi a maior explosão de liberdade da história da humanidade. Milhões passaram a manifestar seus pensamentos e suas ideias para o restante do mundo, instantaneamente, sem fronteiras ou barreiras. A internet inspirou e foi um instrumento essencial em movimentos de libertação de tiranias, da Ucrânia à Tunísia.

Mas também virou território fértil para extremistas e bandidos de todos os tipos. Os assassinos em massa do Estado Islâmico viraram mestres em manipulação de imagem para atrair recrutas. Fraudes, tráfico de pessoas e animais, terrorismo, pornografia infantil, tudo isso levou à criação de mecanismos de controle e policiamento. O jardim da liberdade havia perdido a inocência.

Até que chegou o momento de a internet deixar de ser apenas o jardim das puras liberdades humanas para se tornar um negócio como qualquer outro. Só que muito mais poderoso. Uma brincadeira entre universitários como o Facebook se tornou uma potência econômica mundial. Passamos a pagar direta ou indiretamente também pelo uso da internet nas suas maiores empresas — Meta/Facebook, Twitter, Alphabet/Google etc. E, dependendo de nossa audiência, passamos a ganhar dinheiro dessas plataformas. Começamos, de certa forma, a trabalhar para elas. E assim estabelecemos uma relação de dependência com essas empresas, para as quais somos apenas números.

A multiplicação de Josephs Ks

Quando a internet começou a perder sua liberdade? Claro que não existe uma data exata, mas a eleição de Donald Trump, em 2016, foi um marco. Como a preferência do eleitorado por um homem retratado pela maioria dos meios de comunicação como um “misógino que odiava imigrantes” não poderia ser aceita, atribuiu-se a vitória a uma rede imaginária de fake news formada nas redes sociais. O mesmo formato foi usado para explicar a eleição de Jair Bolsonaro.

A partir daí, o controle sobre as redes sociais começou a ser justificado e aceito. Outro ponto de virada se deu com a pandemia de covid-19, quando o controle passou a ser exercido pelas próprias big techs. Ficou estabelecido que ninguém poderia  duvidar de temas como a origem do vírus, a eficácia das vacinas, a importância do lockdown, entre outros. Quem ousasse contestar tais determinações não explícitas era sumariamente suspenso, desmonetizado ou expulso da rede.

E mais: publicações nas redes sociais passaram a ser usadas como prova para processos jurídicos. As big techs ganharam um poder inédito sobre os cidadãos, funcionando como um Estado paralelo.

O aspecto mais grave dessa escalada de autoritarismo foi que até a figura do juiz se tornou desnecessária. A própria big tech suspende uma conta pelo tempo que ela achar necessário e “desmonetiza sua produção”. É um novo estágio na evolução do obscurantismo — a privatização da censura. E, como não sabe do que está sendo acusado, o usuário não tem como se defender.

Como uma máquina ainda não pode tomar decisões desta natureza sozinha, o problema real está em quem está atrás dela. As redes sociais estão devidamente ocupadas por funcionários com pensamentos à esquerda — os autoproclamados “progressistas”. São eles que decidem o que é apropriado e o que não é. Os chamados Twitter Files, tema de uma reportagem publicada aqui em Oeste, mostrou com farta documentação como Jack Dorsey [foto], o então dono da empresa, nem conhecia a máquina de censura de usuários montada por funcionários militantes. 

Estamos vivendo na internet uma realidade parecida com a época em que o mercado brasileiro era dominado por três ou quatro emissoras de televisão. Sem concorrência, a concentração de poderes das big techs virou um instrumento de poder e, muitas vezes, de arbitrariedades.

Uma certa preguiça

Não era essa a intenção. Quem diz isso é Demi Getschko, pioneiro da internet no país. Ele foi o primeiro brasileiro a ser eleito para o Internet Hall of Fame como parte da ISoc, ou Internet Society — a organização internacional que promove a evolução da internet.

“A concentração de serviços não era a ideia inicial da internet, que sempre buscou ser aberta e ser distribuída”, declarou Getschko a Oeste. “As redes sociais criaram uma concentração, aproveitando-se até de uma certa ‘preguiça’ e ‘conforto’ dos usuários, que passaram a receber automaticamente o que antes tinham de garimpar. Com isso, viraram foco de algoritmos e de captura de dados pessoais e perfis.” As pessoas costumavam “navegar” pela internet. Agora boa parte delas salta obsessivamente de uma rede social para outra, num jogo acomodado que só aumenta o poder dessas empresas.

Demi Getschko deixa claro que não se deve confundir a internet com o que fazem com ela. “Devemos batalhar por uma internet única, e não quebrada. Ela será o substrato sobre o qual crescem e crescerão as boas, as não tão boas e as más aplicações. Mas isso não deve ser confundido com a internet como ecossistema de fundo. Assim, preservar a internet como infraestrutura é fundamental. No caso da web, lógico que uma distribuição menos centralizada seria importante.”

Ordens judiciais específicas

É o fim da liberdade na internet? Não deveria ser, pelo menos de acordo com a Constituição em vigor desde 1988. Segundo o artigo 5, inciso IX, “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. E existe ainda a Lei do Marco Civil, promulgada em 2014, durante a administração Dilma Rousseff. Seu artigo terceiro determina aos usuários da rede a “garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal”. 

A seção III, artigo 19 do Marco Civil especifica que, “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.

Ou seja: fica determinado que empresas devem seguir “ordens judiciais específicas”, e não tomar iniciativas próprias de censura e desmonetização. Essa mesma seção III aponta para casos “relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade” e a “materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado”.  Não fala em censura de ideias, posições políticas e ideológicas.

Mas sempre se dá um jeito. O ministro da Justiça, Flávio Dino, avisou nesta semana que vai entregar a proposta de lei para responsabilizar as plataformas por (segundo o jornal Folha de S.Paulo) “não impedirem que se dissemine conteúdo que viole a lei, ou seja, peça a abolição do Estado Democrático de Direito, encoraje a violência para deposição do governo e incite, publicamente, à animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes constitucionais”. E quem decide esses critérios de julgamento? Alguém em Brasília. As multas em caso de descumprimento vão de R$ 100 mil a R$ 150 mil — por hora. Na prática, mais um passo para o aperfeiçoamento da privatização da censura.

Da China à Islândia

Hoje, a organização Freedom House, que monitora o grau de liberdade na internet de todos os países do mundo, coloca o Brasil como “parcialmente livre”. Numa escala que vai de 0 a 100, a internet brasileira ficou com 62 pontos em 2022. A pior situação é apresentada pelo regime comunista chinês, com 10 pontos. A China há oito anos é a campeã de autoritarismo, segundo a Freedom House. O Irã tem 16 pontos; Cuba e Venezuela estão com 20; e a Coreia do Norte não tem pontuação. (nem internet). Na outra ponta da tabela estão os países com as redes mais livres do mundo: Islândia (95 pontos), Estônia (93) Costa Rica (88) e Canadá (87).

A avaliação do Brasil é beneficiada pelo nosso índice de acesso à rede, com 96 assinaturas de celulares por cem habitantes e a expansão de serviços por satélite e cabo ótico. Mas o longo relatório da Freedom House sobre o Brasil de 2022 nos descreve grotescamente como um regime fascista comandado por um louco. Quem escreveu essa avaliação? Não somos informados. Curiosamente, a mesma organização faz também uma avaliação geral (não só da internet) de liberdade no mundo inteiro. E classifica o país como “livre”, com boas notas em direitos políticos (31/40) e liberdades civis (42/60). Vai entender.

A importância da diversidade

Como garantir a liberdade na internet em nosso país? Lutando por essa liberdade, através dos canais democráticos e legais. Exigindo equilíbrio entre os Poderes e o respeito à Constituição. Mas outras garantias pedem a chamada mão invisível do mercado.

Enquanto os usuários dependerem de algumas poucas plataformas — YouTube, Facebook, Twitter, Google —, estará nas mãos de quem estiver no controle dessas redes. Algumas tentativas de quebrar esse oligopólio ainda estão dando passos tímidos. Como aconteceu com o Parler e concorrentes do Twitter, que ainda não decolaram. Mas que já estão no mercado e podem crescer.

Ao YouTube, fazem frente Rumble, Vimeo e Daily Motion, entre outros. Ao Facebook, o LinkedIn, o Snapchat e o Pinterest. É preciso ter isso claro: quanto mais opções, menos controle.

Chega a vez da Web 3.0

Uma perspectiva mais positiva para a liberdade na internet vem da tecnologia. Pense na Web 1.0 como a primeira versão, que durou até o início dos anos 2000. Os usuários eram limitados à passividade de receber coisas prontas pela internet. Na atual fase, Web 2.0, o usuário é bem mais interativo e faz praticamente tudo pela internet. Mas ainda existe a necessidade de plataformas externas, lugares onde todos se comunicam e interagem.

Web 3.0 troca o princípio do “todos reunidos num lugar” para uma tecnologia que une os participantes independentemente de um ponto central. O site de tecnologia 101 Blockchains descreve a Web 3.0 como um descarte de intermediários. “Não teremos de depender dos gigantescos servidores de dados controlados por uma empresa privada”, afirma o site. “Nossos dados pessoais estarão ainda mais seguros e privados. Eliminaremos a necessidade da palavra ‘intermediário’ no mundo da internet.”

Numa comparação muito simplória, podemos dizer que a Web 3.0 vai ser uma espécie de Pix dos dados. Atualmente, quando postamos um vídeo, ele precisa ser “depositado” numa instituição, como o YouTube, para ser acessado por outros usuários. A tecnologia da Web 3.0 vai colocar produtores e consumidores em contato direto.

Aplicativos dessa nova fase serão chamados dApps, ou “aplicativos diretos”. Teremos uma internet descentralizada, com pouca ou nenhuma necessidade de uma empresa centralizadora dos processos. Eu falarei direto com você sem o Facebook no meio. As técnicas de marketing serão menos massificadas e mais personalizadas.

O anti-Big Brother

Quando começa a Web 3.0? Ela já começou, aproximadamente desde 2021. O conceito está se espalhando e, quando menos se esperar, os dApps estarão nos celulares. (E Demi Getschko alerta para não confundir essa futura fase da internet com o fenômeno das criptomoedas, como muitos estão fazendo. “São oportunistas, não servem à rede.”)

Quanto mais fragmentada a internet e a tecnologia que a mantém funcionando, mais difícil será para quebrarem sua essência: um local onde impera a liberdade.

Título e Texto: Dagomir Marquezi, Revista Oeste, nº 150, 3-2-2023 

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