Chegou a hora de defender a liberdade na
internet
Dagomir Marquezi
Muito além dos jornais, do
rádio e da televisão, a grande revolução universal da imprensa aconteceu em
1989, com o surgimento de um sistema de comunicação entre computadores chamado
WWW (ou Rede Mundial). A internet foi o único veículo de comunicação nascido
para ser inteiramente livre.
“Se a tecnologia tivesse um
proprietário e estivesse sob meu controle total, provavelmente não teria
decolado”, afirmou o britânico Tim Berners-Lee, principal criador da rede, ao
resumir a proposta desse novo veículo. “Você não pode propor que algo seja um
espaço universal e ao mesmo tempo manter o controle sobre ele.”
A internet parecia um milagre. E era. O mesmo Tim Berners-Lee [foto] ajudou a fundar uma comunidade internacional chamada W3C, devotada a desenvolver as bases éticas e operacionais da WWW. Entre os fatores que fizeram a rede nascer livre, estava a descentralização: “Nenhuma permissão de uma autoridade central para postar qualquer coisa na web é necessária, não há nenhum nó central de controle e, portanto, nenhum ponto único de falha… E nenhum ‘botão de desligar’! Isso também implica estar livre de censura e vigilância indiscriminadas”.
Outro princípio defendido pela
W3C era a universalidade. “Para que qualquer pessoa possa publicar qualquer
coisa na web, todos os computadores envolvidos devem falar a mesma
linguagem entre si, independentemente do hardware que as
pessoas estejam usando; do local onde moram; das crenças culturais e políticas
que têm”, afirmava o documento. “Dessa forma, a web quebra as
barreiras e ainda permite que a diversidade floresça.”
A perda da inocência
A internet se transformou
então num milagre da evolução humana. Todas as barreiras que dividiam os povos
começaram a desabar como numa daquelas canções ingênuas de John Lennon. Os
cidadãos não precisavam mais de intermediários. Cada um publicaria seu próprio
jornal, teria a própria emissora de rádio e estação de vídeo. E atingiria
milhões, dezenas, centenas de milhões de seres humanos.
As pessoas, não importava qual
a distância entre elas e que língua falassem, podiam se comunicar umas com as
outras e se reunir em comunidades virtuais. Foi a maior explosão de liberdade
da história da humanidade. Milhões passaram a manifestar seus pensamentos e
suas ideias para o restante do mundo, instantaneamente, sem fronteiras ou
barreiras. A internet inspirou e foi um instrumento essencial em movimentos de
libertação de tiranias, da Ucrânia à Tunísia.
Mas também virou território
fértil para extremistas e bandidos de todos os tipos. Os assassinos em massa do
Estado Islâmico viraram mestres em manipulação de imagem para atrair recrutas.
Fraudes, tráfico de pessoas e animais, terrorismo, pornografia infantil, tudo
isso levou à criação de mecanismos de controle e policiamento. O jardim da
liberdade havia perdido a inocência.
Até que chegou o momento de a
internet deixar de ser apenas o jardim das puras liberdades humanas para se
tornar um negócio como qualquer outro. Só que muito mais poderoso. Uma
brincadeira entre universitários como o Facebook se tornou uma potência
econômica mundial. Passamos a pagar direta ou indiretamente também pelo uso da
internet nas suas maiores empresas — Meta/Facebook, Twitter, Alphabet/Google
etc. E, dependendo de nossa audiência, passamos a ganhar dinheiro dessas
plataformas. Começamos, de certa forma, a trabalhar para elas. E assim
estabelecemos uma relação de dependência com essas empresas, para as quais
somos apenas números.
A multiplicação de Josephs
Ks
Quando a internet começou a
perder sua liberdade? Claro que não existe uma data exata, mas a eleição de
Donald Trump, em 2016, foi um marco. Como a preferência do eleitorado por um
homem retratado pela maioria dos meios de comunicação como um “misógino que
odiava imigrantes” não poderia ser aceita, atribuiu-se a vitória a uma rede
imaginária de fake news formada nas redes sociais. O mesmo
formato foi usado para explicar a eleição de Jair Bolsonaro.
A partir daí, o controle sobre
as redes sociais começou a ser justificado e aceito. Outro ponto de virada se
deu com a pandemia de covid-19, quando o controle passou a ser exercido pelas
próprias big techs. Ficou estabelecido que ninguém poderia
duvidar de temas como a origem do vírus, a eficácia das vacinas, a importância
do lockdown, entre outros. Quem ousasse contestar tais
determinações não explícitas era sumariamente suspenso, desmonetizado ou expulso
da rede.
E mais: publicações nas redes
sociais passaram a ser usadas como prova para processos jurídicos. As big
techs ganharam um poder inédito sobre os cidadãos, funcionando como um
Estado paralelo.
O aspecto mais grave dessa
escalada de autoritarismo foi que até a figura do juiz se tornou desnecessária.
A própria big tech suspende uma conta pelo tempo que ela achar
necessário e “desmonetiza sua produção”. É um novo estágio na evolução do
obscurantismo — a privatização da censura. E, como não sabe do que está sendo
acusado, o usuário não tem como se defender.
Como uma máquina ainda não pode tomar decisões desta natureza sozinha, o problema real está em quem está atrás dela. As redes sociais estão devidamente ocupadas por funcionários com pensamentos à esquerda — os autoproclamados “progressistas”. São eles que decidem o que é apropriado e o que não é. Os chamados Twitter Files, tema de uma reportagem publicada aqui em Oeste, mostrou com farta documentação como Jack Dorsey [foto], o então dono da empresa, nem conhecia a máquina de censura de usuários montada por funcionários militantes.
Estamos vivendo na internet
uma realidade parecida com a época em que o mercado brasileiro era dominado por
três ou quatro emissoras de televisão. Sem concorrência, a concentração de
poderes das big techs virou um instrumento de poder e, muitas
vezes, de arbitrariedades.
Uma certa preguiça
Não era essa a intenção. Quem
diz isso é Demi Getschko, pioneiro da internet no país. Ele foi o primeiro
brasileiro a ser eleito para o Internet Hall of Fame como parte da ISoc, ou
Internet Society — a organização internacional que promove a evolução da
internet.
“A concentração de serviços
não era a ideia inicial da internet, que sempre buscou ser aberta e ser
distribuída”, declarou Getschko a Oeste. “As redes sociais criaram
uma concentração, aproveitando-se até de uma certa ‘preguiça’ e ‘conforto’ dos
usuários, que passaram a receber automaticamente o que antes tinham de
garimpar. Com isso, viraram foco de algoritmos e de captura de dados pessoais e
perfis.” As pessoas costumavam “navegar” pela internet. Agora boa parte delas
salta obsessivamente de uma rede social para outra, num jogo acomodado que só
aumenta o poder dessas empresas.
Demi Getschko deixa claro que
não se deve confundir a internet com o que fazem com ela. “Devemos batalhar por
uma internet única, e não quebrada. Ela será o substrato sobre o qual crescem e
crescerão as boas, as não tão boas e as más aplicações. Mas isso não deve ser
confundido com a internet como ecossistema de fundo. Assim, preservar a
internet como infraestrutura é fundamental. No caso da web, lógico
que uma distribuição menos centralizada seria importante.”
Ordens judiciais
específicas
É o fim da liberdade na
internet? Não deveria ser, pelo menos de acordo com a Constituição em vigor
desde 1988. Segundo o artigo 5, inciso IX, “é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença”. E existe ainda a Lei do Marco Civil, promulgada em 2014, durante a administração Dilma Rousseff.
Seu artigo terceiro determina aos usuários da rede a “garantia da liberdade de
expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição
Federal”.
A seção III, artigo 19 do
Marco Civil especifica que, “com o intuito de assegurar a liberdade de
expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente
poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado
por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências
para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo
assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente,
ressalvadas as disposições legais em contrário”.
Ou seja: fica determinado que
empresas devem seguir “ordens judiciais específicas”, e não tomar iniciativas
próprias de censura e desmonetização. Essa mesma seção III aponta para casos
“relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade” e a
“materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter
privado”. Não fala em censura de ideias, posições políticas e
ideológicas.
Mas sempre se dá um jeito. O
ministro da Justiça, Flávio Dino, avisou nesta semana que vai entregar a
proposta de lei para responsabilizar as plataformas por (segundo o jornal Folha
de S.Paulo) “não impedirem que se dissemine conteúdo que viole a lei,
ou seja, peça a abolição do Estado Democrático de Direito, encoraje a violência
para deposição do governo e incite, publicamente, à animosidade entre as Forças
Armadas e os Poderes constitucionais”. E quem decide esses critérios de
julgamento? Alguém em Brasília. As multas em caso de descumprimento vão de R$
100 mil a R$ 150 mil — por hora. Na prática, mais um passo para o
aperfeiçoamento da privatização da censura.
Da China à Islândia
Hoje, a organização Freedom House, que monitora o grau de
liberdade na internet de todos os países do mundo, coloca o Brasil como
“parcialmente livre”. Numa escala que vai de 0 a 100, a internet brasileira
ficou com 62 pontos em 2022. A pior situação é apresentada pelo regime
comunista chinês, com 10 pontos. A China há oito anos é a campeã de
autoritarismo, segundo a Freedom House. O Irã tem 16 pontos; Cuba e Venezuela
estão com 20; e a Coreia do Norte não tem pontuação. (nem internet). Na outra
ponta da tabela estão os países com as redes mais livres do mundo: Islândia (95
pontos), Estônia (93) Costa Rica (88) e Canadá (87).
A avaliação do Brasil é
beneficiada pelo nosso índice de acesso à rede, com 96 assinaturas de celulares
por cem habitantes e a expansão de serviços por satélite e cabo ótico. Mas o
longo relatório da Freedom House sobre o Brasil de 2022 nos descreve
grotescamente como um regime fascista comandado por um louco. Quem escreveu
essa avaliação? Não somos informados. Curiosamente, a mesma organização faz
também uma avaliação geral (não só da internet) de liberdade no mundo inteiro.
E classifica o país como “livre”, com boas notas em direitos políticos (31/40)
e liberdades civis (42/60). Vai entender.
A importância da
diversidade
Como garantir a liberdade na
internet em nosso país? Lutando por essa liberdade, através dos canais
democráticos e legais. Exigindo equilíbrio entre os Poderes e o respeito à
Constituição. Mas outras garantias pedem a chamada mão invisível do mercado.
Enquanto os usuários
dependerem de algumas poucas plataformas — YouTube, Facebook, Twitter, Google
—, estará nas mãos de quem estiver no controle dessas redes. Algumas tentativas
de quebrar esse oligopólio ainda estão dando passos tímidos. Como aconteceu com
o Parler e concorrentes do Twitter, que ainda não decolaram. Mas que já estão
no mercado e podem crescer.
Ao YouTube, fazem frente
Rumble, Vimeo e Daily Motion, entre outros. Ao Facebook, o LinkedIn, o Snapchat
e o Pinterest. É preciso ter isso claro: quanto mais opções, menos controle.
Chega a vez da Web
3.0
Uma perspectiva mais positiva
para a liberdade na internet vem da tecnologia. Pense na Web 1.0 como
a primeira versão, que durou até o início dos anos 2000. Os usuários eram
limitados à passividade de receber coisas prontas pela internet. Na atual
fase, Web 2.0, o usuário é bem mais interativo e faz praticamente
tudo pela internet. Mas ainda existe a necessidade de plataformas externas,
lugares onde todos se comunicam e interagem.
A Web 3.0 troca
o princípio do “todos reunidos num lugar” para uma tecnologia que une os
participantes independentemente de um ponto central. O site de tecnologia 101
Blockchains descreve a Web 3.0 como um descarte de
intermediários. “Não teremos de depender dos gigantescos servidores de dados
controlados por uma empresa privada”, afirma o site. “Nossos dados pessoais
estarão ainda mais seguros e privados. Eliminaremos a necessidade da palavra
‘intermediário’ no mundo da internet.”
Numa comparação muito
simplória, podemos dizer que a Web 3.0 vai ser uma espécie de
Pix dos dados. Atualmente, quando postamos um vídeo, ele precisa ser
“depositado” numa instituição, como o YouTube, para ser acessado por outros
usuários. A tecnologia da Web 3.0 vai colocar produtores e
consumidores em contato direto.
Aplicativos dessa nova fase
serão chamados dApps, ou “aplicativos diretos”. Teremos uma
internet descentralizada, com pouca ou nenhuma necessidade de uma empresa
centralizadora dos processos. Eu falarei direto com você sem o Facebook no meio.
As técnicas de marketing serão menos massificadas e mais personalizadas.
O anti-Big Brother
Quando começa a Web
3.0? Ela já começou, aproximadamente desde 2021. O conceito está se
espalhando e, quando menos se esperar, os dApps estarão nos
celulares. (E Demi Getschko alerta para não confundir essa futura fase da
internet com o fenômeno das criptomoedas, como muitos estão fazendo. “São
oportunistas, não servem à rede.”)
Quanto mais fragmentada a
internet e a tecnologia que a mantém funcionando, mais difícil será para
quebrarem sua essência: um local onde impera a liberdade.
Título e Texto: Dagomir Marquezi, Revista Oeste, nº 150, 3-2-2023
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