segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A pobreza do discurso

João César das Neves
Hoje fala-se muito mais de pobreza do que antes, o que é normal, dada a crise. Além disso, nestes tempos difíceis Portugal tem brilhado em solidariedade e entreajuda. Mas as duas coisas estão bastante desligadas. A caridade, em geral discreta, pouco tem que ver com o que se diz da pobreza.

Primeiro, porque quem fala sobre miséria costuma estar zangado. Isso até é compreensível, mas a irritação, mesmo bem-intencionada, gera exageros, discórdias, perda de objectividade, o que é lamentável em problema tão grave. Segundo, a quase totalidade dos que elaboram sobre pobreza não são pobres. Também isso é natural, pois os verdadeiros necessitados, por o serem, não têm voz ou influência. Captar auditório é, em si mesmo, um importante activo, que falta aos indigentes. Por isso, aqueles que ouvimos falam de algo que de facto não experimentaram, e em geral mal viram.

Talvez o aspecto mais inesperado seja que, no fundo, as recentes conversas sobre pobreza tratem de outro assunto. Porque o tema delas é quase sempre político. Sem duvidar da integridade e da boa intenção do orador, temos de dizer que a finalidade imediata da retórica não é aliviar os pobres mas atacar o neoliberalismo, rejeitar a troika, derrubar o Governo, combater a reforma do Estado, o Orçamento ou outro decreto particular. A miséria serve de pano de fundo para manifestos doutrinais.

Este facto é muito desconcertante, por duas razões. Primeiro porque as medidas do Governo têm trazido sempre ressalvas nos rendimentos mais baixos. Como explicar então que, apesar disso, tantos protestem em nome deles? Mas a suprema estranheza advém de os defensores dos pobres se virarem para o Estado, que todos sabem ser há séculos um inimigo dos miseráveis.

Reis, imperadores e governantes nunca se interessaram pelos desgraçados, quando não os perseguiam. O poder não gosta dos pobres e estes confiam mais na ajuda do próximo que nas promessas dos chefes. Há muito que é a Igreja, não o Governo, a tratar dos necessitados. As coisas parecem diferentes na moderna democracria assistencialista, mas um velho princípio económico mostra a ingenuidade dessa ilusão.

Foi em 1970 que o prémio Nobel George Stigler (1911-1991) formulou, num dos seus textos clássicos, a lei que atribuiu ao colega da Universidade de Chicago Aaron Director (1901-2004): "Director"s Law of Public Income Redistribution" (Journal of Law and Economics, Vol. 13, n.º 1, p. 1-10). Esse teorema afirma que "as despesas públicas são feitas para o benefício primordial da classe média, e financiadas com impostos suportados em parte considerável pelos pobres e pelos ricos" (op. cit. p. 1). A sua base lógica advém naturalmente de, representando de longe a maior parte da sociedade, as classes médias atraírem naturalmente as graças dos eleitos.

Hoje Portugal, devido às imposições da troika, vive um corolário desta lei em condições inversas. Como nas décadas de endividamento os benefícios seguiram esse princípio, dirigindo-se para os extractos intermédios, agora é aí que cai o corte nas despesas. Aliás, a verdadeira razão da raiva extrema contra o Governo vem da pressão sobre a classe média, uma violação forçada da "lei de Director".

Assim se explicam as confusões dos discursos sobre pobreza. A maioria dos que falam em nome dos desprovidos estão realmente a defender as classes acima, mesmo se nos extractos mais baixos. As medidas contestadas não tocam os verdadeiros pobres, geralmente alheios aos políticos, até de esquerda. As greves dos serviços públicos não se destinam a proteger os desvalidos, que aliás são os que mais sofrem pela falta de transporte e outros sistemas. Em Portugal não há manifestações de mendigos, miseráveis e necessitados. São antes os remediados, que se consideram carentes, que fazem as exigências em nome dos silenciosos.

Boa parte da retórica de constestação baseia-se neste mal-entendido, em que burgueses passam por infelizes. Entretanto, os verdadeiros desgraçados, mudos como sempre, ainda têm de ouvir os muitos aproveitamentos do seu nome.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 04-11-2013

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