sábado, 10 de outubro de 2020

A pandemia de intolerância e o apelo à trégua

O “ódio do bem” tomou proporções bizarras. É hora de resgatarmos a civilidade e o respeito às ideias dos adversários políticos

Ana Paula Henkel 

Em tempos de pandemia histórica, em meio à contagem diária de infectados, mortos e recuperados, encontra-se ali, sem saber em que gráfico ou índice se encaixar, a humanidade. De tempos em tempos ela sofre, fica doente, às vezes bastante enferma, quase moribunda, infectada por pragas devastadoras que matam milhões como o nazismo e o comunismo. O antídoto para tanto mal sempre foi um só: a defesa inviolável da liberdade, da verdade e do legado de homens que morreram para que hoje pudéssemos viver os tempos mais prósperos da História. 

Nunca se teve notícia de tamanha evolução na civilização. Pense em algum setor. Biologia, tecnologia, qualquer um. Mesmo no meio de uma pandemia como poucas vezes no curso da civilização, nunca a humanidade foi tão saudável, tão rica. No entanto, somente em algumas vezes sua alma esteve tão doente. 

Ainda há devastadores e nefastos regimes ditatoriais pelo mundo. Democracias, no entanto, venceram pragas do mal e tomaram conta do globo. Nunca fomos tão livres para falar, ser, amar, trabalhar, escolher, votar, decidir. Onde foi que erramos, então, para que deixássemos a alma de países livres e prósperos contagiar-se com o fascismo espiritual? Com o regime ditatorial de querer aniquilar não apenas ideias opostas, mas desejar a morte de oponentes políticos? O que aconteceu com a civilidade e a paz, conquistadas ao longo dos anos, por meio de sérias guerras e perdas incalculáveis de vidas humanas para que tivéssemos a liberdade de dizer o que pensamos sem medo? Quando a política ganhou o poder de deformar a aura de prósperas sociedades? 

A pandemia do vírus chinês não trouxe apenas temor e dúvidas, ela acentuou outra praga, incubada há alguns anos quando um lado do espectro político começou a perder fôlego e a mostrar sinais de fraqueza. Desde a espetacular e surpreendente eleição de Donald Trump em 2016, para muitos o mundo parece ter entrado em transe. A vitória do nada presidenciável Trump, elemento-surpresa que derrotou quinze republicanos nas primárias do partido e depois Hillary Clinton, trouxe muito mais do que espanto à candidata democrata abençoada por Wall Street e à grande maioria dos veículos da imprensa norte-americana que nela apostou todas as fichas. 

A vitória do bufão laranja pode até ter sido uma vitória da maioria silenciosa na América, mas desencadeou um estrondoso efeito dominó pelo mundo. Os reflexos foram as vitórias do Brexit e de Boris Johnson na Grã-Bretanha e de Jair Bolsonaro no Brasil. E, sem uma vacina para inesperadas derrotas, a pandemia intelectual e de caráter tomou conta dos encastelados. 

Ali, junto às ruínas das torres de marfim das elites, virou pó também qualquer resquício de civilidade e humanidade. A perda de poder cegou políticos e ex-governantes pelo mundo, tirou do armário liberais de araque e desmascarou artistas e celebridades que, em nome da luta contra o fascismo imaginário, perderam todo pudor e começaram a desejar a morte, sem o menor constrangimento, de seus oponentes políticos. 

O que choca é a naturalidade com que a linha dos códigos de civilidade é ultrapassada

Cabeças degoladas dos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro não foram invenção ou desejo do Estado Islâmico, grupo terrorista que tem como modus operandi a decapitação de inimigos. Réplicas ensanguentadas passearam por estúdios e praças e viraram “peças de arte” em sessões de fotos com celebridades em Hollywood e no Brasil. Jogar futebol com uma delas é a mais nova moda. Não sei como a NBA não copiou isso ainda; depois de escrever em seus uniformes o nome de um criminoso com mandado de prisão por estupro, jogar basquete com a “cabeça” do neonazista da América seria de encher os olhos dos marxistas do Black Lives Matter. 

Instigar violência contra políticos não é um evento novo na humanidade, todos sabemos. O que choca, no entanto, é a naturalidade em não combater quando essa linha do mínimo — apenas o mínimo — de civilidade é ultrapassada. No passado, só criminosos ousavam cruzá-la. Hoje em dia, ela é violentada diariamente por artistas e jornalistas. 

Em março de 1981, Ronald Reagan viveu na carne o que vai além de fotos imbecis com celebridades hedonistas e seus estúpidos bonecos ensanguentados com ketchup e chocolate quando John Hinckley Jr., um psicopata, atirou no recém-eleito presidente norte-americano, quase tirando sua vida em frente ao Washington Hilton Hotel, na capital do país. Poucos meses antes, Reagan havia vencido Jimmy Carter, tido como um “homem do povo”, simples e com alta popularidade em boa parte de seu governo, durante o qual introduziu uma série de programas ambiciosos de reforma social e econômica e incluiu um número relativamente grande de mulheres e minorias em seu gabinete. 

Reagan foi gravemente ferido e teve o pulmão perfurado, o que causou sérias hemorragias internas. Ele estava perto da morte quando chegou ao Hospital da Universidade George Washington. Com as condições estabilizadas e na sala de cirurgia, Reagan removeu sua máscara de oxigênio e disse aos médicos e enfermeiras com seu peculiar e famoso senso de humor: “Espero que todos vocês sejam republicanos”. Todos riram, e Joseph Giordano, cirurgião líder da equipe e democrata de longa data, respondeu: “Hoje, senhor presidente, somos todos republicanos”. 

O que aconteceu nos dias após a cirurgia do 40º presidente norte-americano parece algo que jamais veremos atualmente. Uma comoção tomou conta de toda a nação e, sem redes sociais nem internet, votos em cartazes e faixas para que o presidente se recuperasse logo tomaram janelas, carros e canais de TV. A civilidade e a compaixão, acima de qualquer ideologia ou partido, foram os pilares do que parece ser um tempo tão distante. 

O que aconteceu com o mundo? Hoje, a ditadura chinesa mantém em seus “campos de reeducação” mais de 1 milhão de muçulmanos uigures, realocados da mesma maneira que Mao, Stalin e Hitler uma vez trataram populações “indesejáveis”. O silêncio de celebridades que lutam contra o fascismo imaginário em democracias livres é ensurdecedor. Nunca se foi tão livre para falar tanta bobagem, para vender tanto panfleto de uma ideologia dita progressista em que o progresso é imitar o Estado Islâmico e chamar de “arte” réplicas de cabeças decapitadas de presidentes ou achar cool fazer chacota de  facada ou do contágio do vírus chinês. 

Jane Fonda é o retrato de uma sociedade hedonista, narcisista, doente e macabra

Esse “ódio do bem”, expresso por meio de bonecos, artigos escritos por jornalistas com a síndrome da urna vazia e da abstinência de seu corrupto de estimação no debate público, tomou proporções bizarras nesta semana. A atriz norte-americana Jane Fonda, vencedora de dois Oscar, agora encabeçando a lista de pior ser humano na pandemia, resolveu se libertar e declarou sua gratidão ao vírus. Na correria entre sua mansão em Los Angeles e seu rancho no Novo México, Jane Fonda encontrou um tempinho para expressar seu apoio a Joe Biden e sua felicidade pela existência do coronavírus. Sim, você leu corretamente. “Que grande presente! Que tremenda sorte! A covid é um presente de Deus para a esquerda!”, disse, finalizando o estado de êxtase com uma risada. 

Não há espanto: Jane Fonda é o retrato de uma sociedade hedonista, narcisista, doente e macabra que vive rodeada de espelhos e se alimenta do ressentimento de quem não tem mais importância ou relevância segundo sua visão política. 

Talvez o exemplo mais recente de um mundo paralelo, que parece não existir mais, seja a amizade entre Antonin Scalia, juiz conservador da Suprema Corte dos EUA, nomeado por Ronald Reagan e falecido em 2016, e Ruth Ginsburg, conhecida como a mais progressista juíza da mais alta corte norte-americana e que faleceu há duas semanas. Scalia e Ginsburg pertenciam a lados completamente opostos no espectro ideológico. Ele era pró-vida e juiz originalista, guiado pela letra fria da lei e o que está escrito na Constituição. Ela era pró-aborto e uma juíza ativista, guiada pelas leis vistas como organismos vivos, que podem mudar dependendo da interpretação do juiz, e não pelas casas legislativas. 

Mesmo com lugares muito bem estabelecidos no campo ideológico, Scalia e Ginsburg eram constantemente vistos juntos em óperas e viagens com as respectivas famílias, davam longas entrevistas em que falavam da paixão por vinhos, música e poesia, e jamais discutiam assuntos relacionados à Corte em público. Seus legados como juízes são verdadeiras bíblias e um norte para conservadores e progressistas. Mas, talvez, em um mundo atual tão estranho, eles não imaginariam que, mesmo após a morte, o maior legado que deixam é o da tolerância e do respeito verdadeiros — e não cenográficos. Respeito que vem antes de tudo, até de opiniões diferentes, pelo ser humano. 

Antonin Scalia costumava citar muito os Pais Fundadores dos EUA em seus brilhantes artigos, análises, decisões e aulas. John Adams, o Pai Fundador que se tornou o segundo presidente, perdeu a reeleição para Thomas Jefferson, outro Pai Fundador, em 1800. Naquele ano, a vitória de Jefferson veio rodeada de intrigas, brigas e desavenças. Sua eleição quebrou uma hegemonia de doze anos do grupo de George Washington e John Adams e dividiu a América entre dois partidos, os Republicanos e os Federalistas. 

Mesmo diante da extrema animosidade que se estabelecia na nação completamente dividida — nação que havia recentemente saído de uma guerra e assistia ao horror da Revolução Francesa —, em seu discurso de posse Thomas Jefferson não hesitou em clamar pela civilidade. Disse ele: “Somos todos Republicanos, somos todos Federalistas”. 

Se hoje somos “republicanos ou federalistas”, não importa. Só não podemos ser jacobinos, cenográficos ou virtuais, para os quais a solução é “degolar” o inimigo e calar sua voz. A história nos mostra que, na última vez em que cabeças decapitadas foram vistas como algo normal, o desfecho não deu certo para ninguém, principalmente para quem aplaudia a barbárie. 

Título e Texto: Ana Paula Henkel, revista Oeste, nº 29, 9-10-2020, 17h39

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