Lula deixou uma herança
maldita: para não passar por conivente, Dilma teve de demitir
"companheiros"
Ferreira Gullar
Como disse aqui na ocasião em
que Lula deixava o governo, não pretendia voltar a escrever sobre ele.
Principalmente porque deixava o governo. Sucede que não se sabe ao certo se ele
o deixou e, se o deixou, atua como se não o tivesse deixado -outro dia
inaugurou um hospital na Bahia- e se preparasse para reassumi-lo de fato em
2014.
Infelizmente não dá para falar
bem dele, mesmo porque o que me traz de volta ao tema é, por um lado o que ele
anda fazendo e dizendo e, por outro, a avaliação que a distância dele me
possibilitou.
Não tenho prazer nenhum em
falar mal de ninguém, particularmente quando se trata de uma figura nacional em
quem tanta gente acredita. Pode parecer má vontade ou rancor, mas não é nada
disso.
Penso como simples cidadão,
atento ao que fazem os políticos e às consequências disso na sociedade. Tanto
mais se esse político tem o peso e a influência de um líder como Lula.
Basta ver o que conseguiu
quando presidente da República, usando de carisma, habilidade e falta de
escrúpulos para montar uma máquina de poder difícil de enfrentar.
Não discuto a legitimidade de
um partido ou de um líder pretender governar o país por mais de um mandato ou
voltar ao poder, já que a lei o permite. A meu juízo, quanto mais alternância,
melhor, já que dificulta a manutenção de feudos no organismo do Estado. Se a
permanência prolongada já oferece esse risco, tanto pior é quando se trata de
um partido ou líder pouco confiáveis.
E, se meu juízo a respeito de
Lula já não era bom, o distanciamento e a revelação de novos fatos só vieram
agravá-lo.
Lula é, sem dúvida, um
fenômeno. Poucos líderes possuem, como ele, tanta sagacidade aliada à falta
total de escrúpulos. Hoje entendo por que Brizola, referindo-se a ele, disse
que era "capaz de pisar no pescoço da mãe". Com isso, não quis
apontá-lo como um sujeito de temperamento violento, e sim destituído de
qualquer compromisso com os valores morais. Só lhe importa o poder. De modo
que, para conquistá-lo e mantê-lo, tudo vale.
Não me esqueço da expressão
que vi no olhar de Lula, em 2005, quando eclodiu o escândalo do mensalão: era
um misto de pavor e perplexidade. "Fui traído", afirmou então,
tentando safar-se, e o conseguiu, jogando a culpa sobre seus auxiliares
imediatos. Pouco depois, dizia que o mensalão era uma espécie de caixa dois.
Hoje afirma que tudo não passou de uma conspiração para tirá-lo do poder. Isso
muito embora o procurador-geral da República tenha aceitado denunciar 34 dos 40
acusados no processo.
Esse é o Lula, que se
apropriou dos programas do seu antecessor, muito embora tudo tenha feito para
impedir que fossem implantados.
Forçado pelas circunstâncias,
rendeu-se à aliança com o PMDB, mas manteve o pacto com a arraia-miúda, já não
a troco de grana, mas de cargos públicos e vista grossa para a corrupção que,
em seu governo, se instalou nos ministérios.
Enfim, posso ter hoje uma
compreensão melhor de quem é Lula e quais os seus propósitos. Ele é produto
deste momento histórico, quando o fim dos partidos comunistas e do
revolucionarismo guerrilheiro abriu caminho para líderes neopopulistas que,
arvorando-se em defensores dos pobres, negociam com os ricos a paz social em
troca de apoio material e político.
É o que Lula fazia como presidente, aliando o
discurso antiamericano à oferta de empréstimos subsidiados do BNDES a grandes
empresários. Se estava de acordo com as falcatruas praticadas por seus
nomeados, pouco importava. Fez que de nada sabia, como convinha.
Eis a herança maldita que ele
deixou para Dilma: para não passar por conivente, teve ela de demitir dezenas
de "companheiros", envoltos em falcatruas.
No entanto, para ficar bem com
os partidos da base, diz que a demissão dos corruptos não é faxina, que lembra
sujeira. Aliás, corrupção também mudou de nome: agora se chama
"malfeitos", como traquinagens de crianças... Haja eufemismos! E logo
da parte de Dilma, que é a finesse em pessoa.
Mas os escândalos não param e
em apenas oito meses. Já imaginou o que acontecerá em quatro anos? O lulismo
está colhendo o que plantou. Independentemente do nome que Dilma dê a isso,
talvez seja o começo do fim da aventura neopopulista, a que o país foi
arrastado nestes últimos oito anos.
Título e Texto: Ferreira
Gullar. Publicado originalmente na “Folha de S. Paulo”, 04-09-2011
Colaboração: Almir Papalardo
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Ferreira Gullar, foto: AD |
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